Linguagem e Efeitos Desenvolvimentais da Interpretação da Atividade, livro de Ecaterina Bulea

Linguagem e Efeitos Desenvolvimentais da Interpretação da Atividade

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Para compreender a realidade das situações de trabalho; para identificar as capacidades que nela manifestam os trabalhadores; para separar as representações e a vivência desses trabalhadores em sua própria profissão, enfim, para tentar explorar esses conhecimentos, na dupla perspectiva de uma melhoria das condições de trabalho e do desenvolvimento das pessoas que nelas estão implicadas, foram elaborados diversos dispositivos de pesquisa-intervenção atualmente bem conhecidos.

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Descrição
Para compreender a realidade das situações de trabalho; para identificar as capacidades que nela manifestam os trabalhadores; para separar as representações e a vivência desses trabalhadores em sua própria profissão, enfim, para tentar explorar esses conhecimentos, na dupla perspectiva de uma melhoria das condições de trabalho e do desenvolvimento das pessoas que nelas estão implicadas, foram elaborados diversos dispositivos de pesquisa-intervenção atualmente bem conhecidos.

Nesta obra, justamente, Ecaterina Bulea, apresenta dispositivos importantes que seguramente contribuirão para pesquisas sobre a formação profissional e o desenvolvimento do adulto e contribui para os estudos sobre Linguística Teórica e Aplicada e para as pesquisas inseridas na área de saúde, na medida em que são apresentadas cenas de cuidados de enfermagem e textos produzidos e lidos nesse contexto, e, de maneira mais ampliada, esta obra também pode contribuir para uma reflexão a respeito de metodologia de trabalho científico, pelos encaminhamentos e rigor da coleta e das análises dos dados. É importante registrar que a linguagem da autora possibilita uma comunicação com pesquisadores de diferentes níveis e diferentes áreas.

SUMÁRIO

PREFÁCIO (Jean-Paul Bronckart e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin)

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1: Análise das práticas e formação
Desafios e características gerais da análise das práticas
Métodos e técnicas de análise do agir
Agir e linguagem: que relações?

CAPÍTULO 2: A natureza e a transmissão da linguagem: uma questão espinhosa
A linguagem ideal, racional e a busca da transmissão perfeita
A linguagem como “organismo vivo” e a transmissão orientada
Fundamentos e características da “vida semiológica” em Saussure
Implicações e desdobramentos da teoria saussuriana

CAPITULO 3: Atividade linguageira, textualidade e significação
A atividade linguageira vista sob o ângulo da produção
Um modelo de arquitetura textual
Do texto aos signos

CAPITULO 4: Um exemplo de pesquisa que focaliza a interpretação do agir em situação de trabalho
Considerações teóricas relativas ao agir e esclarecimentos terminológicos
Desenvolvimento da pesquisa e tipos de dados
Metodologia da análise dos dados

CAPITULO 5: A compreensão do agir nos documentos institucionais
Organização e propriedades textuais-discursivas dos documentos institucionais
As modalidades de compreensão do agir-cuidado e seus produtos

CAPITULO 6: Interpretação do agir e morfogênese de ações nas entrevistas
Os cenários das entrevistas
As figuras de ação

CAPITULO 7: Agir, morfogênese de ações e desenvolvimento praxiológico
As figuras de ação consideradas na sua relação com o agir
As figuras de ação vistas sob o ângulo desenvolvimental
Retorno prospectivo sobre a problemática da análise do agir em formação

BIBLIOGRAFIA

Prefácio

A tomada de consciência das propriedades efetivas de seus próprios comportamentos, assim como de suas próprias tendências, sentimentos, mecanismos de pensamento, etc., é um processo susceptível de gerar (ou de favorecer) as aprendizagens e o desenvolvimento. Essa convicção, que certamente está presente no senso comum, constituiu a ferramenta da maior parte dos trabalhos de Psicologia desenvolvimental do século XX, em particular dos trabalhos de Piaget (1974) e de Vygotski ([1934] 1997), está igualmente na centralidade dos procedimentos de análise das práticas que foram conhecidas, há algumas décadas, no campo das ciências do trabalho e da formação dos adultos.

Para compreender a realidade das situações de trabalho; para identificar as capacidades que nela manifestam os trabalhadores; para separar as representações e a vivência desses trabalhadores em sua própria profissão, enfim, para tentar explorar esses conhecimentos, na dupla perspectiva de uma melhoria das condições de trabalho e do desenvolvimento das pessoas que nelas estão implicadas, foram elaborados diversos dispositivos de pesquisa-intervenção atualmente bem conhecidos. De um lado, foram re-exploradas e reorientadas as entrevistas de pesquisa que estavam em uso, nas ciências sociais, desde quase um século. De outro lado, foram criados e progressivamente afinados novos dispositivos: - a entrevista de explicitação elaborada por Vermersch (1994) e sua escola; - a instrução ao sósia, proveniente dos trabalhos fundadores de Oddone et al. (1981) e reestruturada por Clot (1999); a autoconfrontação simples e a autoconfrontação cruzada, elaboradas por Clot e Faïta (2000). Explorando, em particular, os dois últimos dispositivos, Clot realizou um procedimento de “Clínica da atividade” que hoje constitui a maior referência nesse campo, para o que ele propõe, no plano teórico, uma renovação da abordagem vygotskiana do desenvolvimento e uma extensão desta no nível dos adultos, para o que ele fornece simultaneamente princípios e instrumentos exploráveis na intervenção sobre as situações de trabalho, assim como na formação dos trabalhadores.

Se era, no início, de origem principalmente francesa, sobretudo em uso nas empresas de produção de bens e de serviços, esse procedimento de análise do trabalho se estendeu rapidamente a outras esferas geográfico-culturais, em particular no Brasil, estendendo-se também a outros tipos de profissões, em particular às profissões responsáveis pela formação (Souza- e Silva e Faïta, 2002, Ferreira, 2003, Machado, 2004 , Saujat, 2004, Boghi, 2006). Ao mesmo tempo em que se expandia com sucesso, esse procedimento fez, entretanto, re-emergir algumas questões fundamentais, de natureza, ao mesmo tempo, epistemológica, teórica e metodológica, onde se situam notadamente as três problemáticas enunciadas claramente por Ecaterina Bulea a partir da Introdução de sua obra. A primeira questão concerne ao objeto que é considerado pelos dispositivos de análise: além das aparentes evidências, como descrever e conceituar, de maneira precisa ou técnica, esses fenômenos que quase indiferentemente o qualificamos de “práticas”, de “atividades”, de “ações” ou ainda de “agir”? Essa questão do próprio estatuto das dimensões praxiológicas das condutas humanas é, sabemos, particularmente complexa, no que implica, de um lado, compreender a natureza da relação existente entre os processos aos quais se referem, de outro, os outros processos dinâmicos que fundamentam o ser vivo, essa outra dimensão central do funcionamento humano, que é a Gnosiologia ou o funcionamento de processos de pensamento. A segunda questão tem relação com as condições sob as quais é possível ter acesso a esse objeto que, por razões que expõe Ecaterina Bulea em sua obra (cf. capítulo 4), qualificaremos doravante de “agir humano”: uma vez que a simples observação se revela notoriamente insuficiente, o procedimento de conhecimento das propriedades do agir precisa necessariamente de reflexões e verbalizações dos atores, mas em que medida esses relatos secundários fornecem indicações confiáveis sobre as propriedades reais desse agir, ou, ainda, em que condições permitem a elaboração de um saber verificável, controlável e transmissível (em uma palavra, de um saber científico) relativo a esse objeto ? A terceira questão diz respeito, enfim, à dimensão formativa da análise do agir: além da crença partilhada nas potencialidades desenvolvimentais das conscientizações que citamos no início do presente Prefácio, como identificar, descrever e conceituar os processos específicos pelos quais as novas informações e as novas significações resultantes dessas conscientizações engendram as transformações e as reorganizações dos conhecimentos e das condutas caracterizando o desenvolvimento das pessoas?

Se ela trata das três questões que precedem e nelas traz os elementos de resposta, o procedimento de pesquisa que apresenta Ecaterina Bulea na presente obra visa, entretanto, principalmente, a ilustrar e a defender uma tese fundamental relativa à última problemática. Essa tese se declina em três tempos. Primeiramente, na medida em que não podemos ter acesso diretamente às propriedades do agir, às tomadas de consciência deste ou às reflexões a seu propósito, constituem interpretações que se explicitam necessariamente por intermédio da linguagem. Segundo, essa própria linguagem só se manifesta sob a forma de enunciados ou de textos, que são os produtos de uma verdadeira atividade ou de um verdadeiro trabalho, implicando decisões e escolhas na utilização dos recursos fornecidos por uma língua natural. Terceiro, enfim, é examinando as características técnicas desse “trabalho linguageiro” com relação a uma atividade ou a uma profissão que é possível identificar e conceituar os processos pelos quais os produtos das tomadas de consciência, primeiramente, podem ser verdadeiramente assumidos pelas pessoas, e que, em seguida podem fazer o objeto de uma interiorização engendrando uma reorganização conjunta dos sistemas de significações e das capacidades do agir.

Essa tese geral é fundamentada, como constatamos, no postulado da dimensão fundamentalmente praxiológica da linguagem, na compreensão desta enquanto atividade dinâmica, sob o efeito da qual se constroem, isto é, se fazem, se transformam e/ou se desfazem as representações humanas dos diversos componentes do mundo. Ora, como lembra a autora no início de seu capítulo 2, essa concepção da linguagem permanece, de maneira geral, minoritária; mais precisamente se a dimensão primariamente ativa da linguagem é hoje tida como evidente pelas correntes linguísticas, como vinculada ao “entorno praxiológico”, permanece, no entanto, negligenciada pela corrente lingüística, em declínio, da Gramática gerativa e transformacional, e parece ignorada pela maior parte das correntes das outras ciências humanas. Por convicção teórica, no caso do chomskismo, ou “por ausência”, no caso da maioria das escolas de ciências humanas, a linguagem continua sendo concebida na perspectiva procedente de Platão, de Aristóteles e de Port-Royal: as unidades e estruturas das línguas deveriam, por razões de “princípio”, ter seus fundamentos em organizações materiais ou cognitivas preexistentes, e em consequência, a linguagem constituiria apenas um instrumento de visibilidade de entidades preexistentes, instrumento certamente convencional (nada pode negar a diversidade das línguas naturais), mas não tendo entretanto nenhum papel na construção ou na transformação dessas mesmas entidades. E, quando, assim mesmo, foram denunciadas, por longo tempo, as graves divergências, decorrentes dessa concepção (para o essencial, uma impossibilidade radical de explicar e a fantástica diversidade das estruturas das línguas naturais e a permanência das mudanças afetando essas mesmas línguas), essa concepção de uma linguagem “transparente” e se fazendo “negligenciável” continua incansavelmente a se reproduzir....

O exame proposto por Ecaterina Bulea no seu capítulo 1, mostra que as ciências do trabalho e as correntes de análise da atividade não escapam de maneira nenhuma desse obstáculo. Sobre a base de uma descrição sintética dos fundamentos, dos objetivos e das condições de realização dos três dispositivos, mobilizando exclusivamente a atividade de linguagem (isto é, a entrevista de pesquisa, a entrevista de explicitação e a instrução ao sósia), a autora mostra que os dados empíricos que constituem as produções verbais dos trabalhadores são aí quase sempre analisados sob o único ângulo de seu conteúdo referencial; com exceção do reconhecimento da dimensão dos gêneros de textos nos trabalhos provenientes da “Clínica da atividade”, na qual os discursos dos trabalhadores são tratados sem a menor atenção à diversidade das formas linguísticas (unidades-signos, estruturas sintáticas, orientações enunciativas, etc.), mobilizadas para evocar um “mesmo” conteúdo e, desse modo, sem a menor reflexão concernente às operações que servem de base à escolha de uma ou de outra forma. Essa ausência de atenção não onera, evidentemente, os processos potencialmente desenvolvimentais que se desdobram efetivamente nas situações de formação analisadas, no entanto, impede totalmente de compreender o que são esses processos e de tentar, em consequência, melhorar esses dispositivos sobre a base desse conhecimento.

No capítulo 2 de sua obra, Ecaterina Bulea propõe uma análise resumida de certas características essenciais da linguagem que devem ser consideradas para compreender o papel que esta desempenha nas tomadas de consciência e nos processos de desenvolvimento. Ela convoca, para isto, primeiramente a abordagem de Humboldt, que, de um lado, ressaltou que a linguagem constituía primariamente uma forma de energeia, isto é, uma atividade comunicativa em permanente dinâmica, com relação à qual as estruturas das línguas constituíam apenas um segundo produto e relativamente artificial (ergon), e que de outro lado sustentou que as unidades e as regras dessa atividade não tinham nenhum fundamento nas entidades mentais preexistentes, mas constituíam, ao contrário, os meios pelos quais as entidades mentais humanas se constroem. A autora traz, em seguida, certos aportes da obra de Saussure que apóiam e validam essas duas teses. Primeiramente, uma abordagem das condições sob as quais as línguas se perpetuam, ao mesmo tempo em que se transformam, que pôs em evidência a dimensão fundamentalmente sócio-histórica da linguagem assim como o estatuto integralmente psíquico das entidades que a compõem. Em seguida, uma análise particularmente profunda do estatuto dessas entidades que mostra que os signos são os produtos de uma combinação complexa de operações psíquicas elementares que cristalizam e estabilizam (momentaneamente) acordos sociais relativos à designação de entidades do mundo. Ecaterina Bulea demonstra que essa análise saussuriana do estatuto dos signos constitui uma clara validação das teses de Vygotski e do Interacionismo social em geral, concernente ao papel decisivo que desempenham a apropriação e a interiorização dos signos na constituição do pensamento consciente.

Mas a atividade de linguagem coloca em funcionamento as unidades-signos no quadro que engloba os textos. Convém então examinar igualmente o que são esses textos, em suas relações com atividades práticas humanas às quais se articulam, assim como em suas modalidades de estruturação interna. Proposto no capítulo 3, esse exame se inscreve no quadro teórico do Interacionismo Sociodiscursivo (Bronckart, 1997;1999), do qual dois aspectos são evidenciados. De um lado, uma abordagem das condições de produção dos gêneros de textos, que se inspiram no programa metodológico e nas proposições fundadoras de Voloshinov ([1929]1977). De outro lado, uma abordagem da arquitetura interna dos textos que atribui uma importância determinante aos tipos de discurso, como configurações de unidades linguísticas interdependentes, comprovando um determinado modo de relação, de uma parte com o conteúdo referencial, de outra parte, com a situação de comunicação, cujo texto é o produto. Esses tipos de discurso, que Genette qualificava, por sua vez, de modos de enunciação (1986, p. 142), são estruturas linguísticas “intermediárias”, uma vez que entram na composição de um texto sem ser completamente determinadas pelo gênero do qual esse texto depende, e uma vez que elas desempenham um papel estruturante nas unidades linguísticas de posição inferior (estruturas frásticas e unidades-signos claramente).

Na base dessa concepção dos textos e de sua organização, emerge então um questionamento geral que pode ser formulado como segue: - desde a pequena infância, a interiorização dos signos dá origem às unidades e às operações elementares do pensamento; - mas esse pensamento continua, em seguida, a se desenvolver, sob a forma de operações complexas de raciocínio, notadamente, ao mesmo tempo em que se desenvolvem a utilização e o domínio da atividade de linguagem; - quais são então as relações entre essas duas ordens de desenvolvimento, e em que medida podemos evidenciar formas de prolongamento dos efeitos estruturantes da linguagem no pensamento?

Os trabalhos empíricos que Ecaterina Bulea relata nessa obra dizem respeito apenas a uma vertente desse questionamento: eles abordam o papel que as dimensões linguísticas desempenham na representação das práticas de trabalho (e não seu papel na constituição dos conhecimentos formais). Visam mais particularmente a analisar a influência que exerce eventualmente a dimensão linguística dos tipos de discurso nas modalidades de elaboração dessas representações.

Apresentadas no capítulo 4, essas pesquisas empíricas basearam-se no trabalho de enfermagem e consistiram primeiramente em recolher um corpus constituído de dois tipos de textos que retomam esse trabalho: - documentos institucionais supostamente para descrever e prescrever as tarefas de cuidado que o trabalho comporta; - entrevistas realizadas com as enfermeiras, antes e depois da realização de um cuidado (tendo sido, aliás, o objeto de um registro em áudio-vídeo). A metodologia de tratamento dessas produções linguageiras consistiu, de um lado, em uma análise de conteúdo, identificando os diferentes ângulos de compreensão das tarefas e do trabalho, e, de outro lado, em uma análise das características linguísticas dos textos produzidos, abordando, em uma lógica “descedente”, os diferentes níveis da arquitetura textual (características do gênero relativas às dos tipos de discurso, depois às das relações predicativas e ás das unidades-signos).

O aspecto mais revelador dos resultados dessas pesquisas deve-se ao fato de se evidenciarem diferentes figuras de ação que são construídas nesses textos de interpretação do trabalho. Identificadas primeiramente sob o termo “registros de agir” (Bulea & Fristalon, 2004), essas figuras foram reanalisadas em detalhe e progressivamente conceituadas pela autora (Bulea, 2007; Bulea & Bronckart, 2006), que propõe, a partir daí, uma descrição particularmente esclarecedora nos capítulos 5 e 6 da presente obra. A análise de conteúdo evocada anteriormente fez surgir alguns grandes temas, revelando ângulos de ações diferentes das realidades do cuidado e do trabalho: propõe, antes de tudo centrar-se na definição do cuidado, ou, antes de tudo na sua preparação, ou antes de tudo em seu desenvolvimento, ou, ainda, antes de tudo, em certos aspectos contextuais do trabalho de enfermagem, etc. A análise linguística permitiu identificar os tipos de discurso que eram mobilizados nos textos, assim como outros diversos sistemas de marcação linguística que aí estavam associados no que concerne, em particular, à expressão da agentividade, das relações temporais e das modalizações. As figuras de ação se apresentam como formas interpretativas, resultado da interface posta entre um certo tipo de centralização sobre o conteúdo e uma determinada modalidade de exploração dos recursos linguísticos, dentre eles, em particular, os tipos de discurso. Essas figuras não são então nem unilateralmente dependentes das escolhas temáticas, nem unilateralmente dependentes das escolhas discursivas, mas o teor e o tom de sua dimensão interpretativa são, contudo, parcialmente restritos aos (ou dependentes dos) recursos linguísticos mobilizados.

Nos documentos institucionais, observamos o aparecimento recorrente de uma única e mesma figura, qualificada de ação padrão que mobiliza exclusivamente um discurso teórico, organizando quase sempre frases no infinitivo referindo-se sempre a atos pontuais, sem nenhuma menção dos potenciais autores desses atos (as enfermeiras). Apresentado esse modo de estruturação linguística, esses textos não podem fornecer nenhum modelo, nem mesmo nenhuma definição da atividade de cuidado que eles evocam e, na medida em que ocultam totalmente a responsabilidade das enfermeiras, são o impasse nas decisões que as enfermeiras devem tomar, tanto no seu trabalho, quanto nas significações que elas podem atribuir a seus próprios atos e a sua própria profissão.

Nas entrevistas, observamos, por outro lado, a construção de diversas figuras, apresentando importantes propriedades diferenciais, a saber, as figuras da ação ocorrência, da ação acontecimento passado, da ação experiência, da ação canônica e da ação definição. Descritas em detalhe no capítulo 6 da obra, essas figuras constituem o resultado da adoção de um tipo de “ponto de vista global”, a partir do qual a representação de uma tarefa ou de uma atividade é construída: lançar um rápido olhar no agir que acaba de ser realizado, ou, antes de tudo, solicitar um agir exemplar, ou, antes de tudo, resumir as constantes do agir através do tempo, ou, antes de tudo, lembrar os supostos princípios do reger esse agir, ou, enfim, antes de tudo, abordar o estatuto global desse agir em relação aos corpora de conhecimentos profissionais. Essas escolhas de pontos de vista estão em evidência nas escolhas de caráter “enunciativo” e a realização das figuras correspondentes implica, desde então, um bom nível de domínio dos diferentes processos linguísticos, dependendo da enunciação, dentre elas, em particular, o domínio dos tipos de discurso. Além disso, esses diversos pontos de vista são também os que mobilizam as diferentes instâncias e as diferentes categorias de pessoas concernidas ou implicadas num trabalho, e eles se constituem, tornando-se reflexos dos debates sociais, às vezes extremamente contraditórios, considerando os desafios, as condições e a significação do trabalho.

As análises de Ecaterina Bulea mostram ainda que as enfermeiras produzem, geralmente, uma sucessão de figuras no curso de uma mesma entrevista e que às vezes, elas próprias produzem a totalidade dessas diferentes figuras em um tipo de percurso interpretativo que poderíamos qualificá-lo de “completo”. Essa constatação conduz então à hipótese segundo a qual o desenvolvimento de um percurso interpretativo, visando à completude, isto é, remobilizando para si as posições em funcionamento no debate social a propósito do estatuto do trabalho, constitui um tipo de antecipação, até mesmo, de condição para o funcionamento dessa reestruturação das representações pessoais que é garantia de um desenvolvimento ao mesmo tempo psicológico e profissional. Nesse sentido, o trabalho discursivo do qual as figuras de ação constituem a marca, parece constituir uma condição para a apropriação dos elementos do debate social, ela mesma, condição de uma interiorização levando ao enriquecimento e à reestruturação das próprias representações.

Os elementos teóricos, metodológicos e empíricos que Ecaterina Bulea reuniu e organizou na presente obra fornecem indiscutivelmente elementos preciosos para a compreensão da natureza dos processos implicados nos dispositivos de análise das práticas de cunho formativo. Mas, como a autora o indica em seu capítulo conclusivo, a prudência persiste, no entanto, no rigor e as hipóteses interpretativas às quais suas pesquisas chegaram têm ainda, essencialmente, estatuto de “pistas de reflexões”, para explorar nos trabalhos posteriores.

Antes de tudo, é indispensável aplicar uma metodologia de pesquisa similar a essa, apresentada nesta obra a um corpus de textos e/ou de documentos provenientes de outras situações de trabalho, e eventualmente a outros dispositivos de análise das práticas. Essa extensão do procedimento permitiria inicialmente verificar se outras figuras de ação ainda podem ser construídas e assim visaria à elaboração de um quadro “exaustivo” das diversas figuras possíveis; permitiria, igualmente, pôr em evidência os eventuais efeitos que exercem os tipos de trabalho e de tarefas, por um lado, sobre a distribuição das figuras de ação (tal figura poderia ser privilegiada, ou ao contrário, ausente na interpretação de um tipo de tarefa ou de um tipo de trabalho), e sobre algumas das característica linguística dessas figuras, por outro lado.

Como o preconiza Ecaterina Bulea em todo o último capítulo de sua obra, seria igualmente indispensável, no curso das sessões de análise das práticas, favorecer a heterogeneidade discursiva nas produções verbais dos formados. A realização desse objetivo implica primeiramente indentificarmos os procedimentos interativos pelos quais essa diversificação discursiva poderia ser obtida, em seguida em que os intervenientes sejam formados nesses procedimentos e suscetíveis de introduzi-los no momento oportuno. De tais pesquisas-intervenções seria permitido, então, testar na prática, a validade da hipótese do papel desenvolvimental dos percursos discursivo-interpretativos.

De maneira mais geral, enfim, os resultados desses trabalhos, considerando o papel da linguagem na construção das representações do agir, deveriam ser confrontados aos trabalhos resultantes de pesquisas relativos ao papel que essa mesma linguagem desempenha nos processos de estruturação dos conhecimentos formais; devendo tal comparação permitir esclarecer um pouco o teor das interações complexas que, como destacava Vygotski, se desenvolve ao longo da vida psicológica entre processos de pensamento e processos linguageiros.

Por fim, a obra de Ecaterina Bulea ultrapassa o espaço das reflexões sobre a análise dos discursos do trabalhador da área de saúde em (e sobre) seu agir no trabalho. Pelas descrições feitas dos procedimentos de análise linguística, alcança dimensões diversas. Por essa razão, esta obra pode contribuir para os estudos sobre Linguística teórica e Aplicada e para as pesquisas inseridas na área de saúde, na medida em que são apresentadas cenas de cuidados de enfermagem e textos produzidos e lidos nesse contexto, e, de maneira mais ampliada, esta obra também pode contribuir para uma reflexão a respeito de metodologia de trabalho científico, pelos encaminhamentos e rigor da coleta e das análises dos dados. É importante registrar que a linguagem da autora possibilita uma comunicação com pesquisadores de diferentes níveis e diferentes áreas. (Jean-Paul Bronckart e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin)

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Introdução

No campo da formação dos adultos e da intervenção no espaço do trabalho, atualmente, vem sendo usado um conjunto de dispositivos de análise das práticas (a entrevista de explicitação, a instrução ao sósia, as auto-confrontações simples e cruzadas, etc.); sendo seu funcionamento explicitamente orientado por objetivos de ordem formativa ou desenvolvimental. Esses dispositivos apresentam, assim, principalmente, uma dimensão de intervenção prática; mas o seu crescimento contribuiu, também, direta ou indiretamente, para a revitalização de um conjunto de questões teóricas e metodológicas que constituem hoje domínios centrais de investigação. Trata-se, primeiramente, da questão teórica do estatuto dos processos praxiológicos (o agir, a atividade, a ação, a prática, o trabalho, etc.), e de seu papel nas aprendizagens e no desenvolvimento humano – processos, que, aliás, apresentam dimensões mais gerais e colocam problemas nodais no conjunto das ciências do humano. Trata-se, em seguida, da problemática metodológica correspondente, relacionando-se às modalidades sob as quais esses processos praxiológicos se tornam acessíveis aos atores e aos observadores, se são descritíveis ou ainda transmissíveis. Trata-se, enfim, da questão mais especificamente formativa, relacionando-se às condições sob as quais a compreensão das propriedades desses processos pelas pessoas, que são o cerne da questão, é susceptível de contribuir para seu desenvolvimento.

Em relação a essas questões, os procedimentos da análise das práticas se caracterizam, primeiramente, pela afirmação da centralidade da análise do agir no quadro da formação, sendo essa tomada de posição articulada a dois postulados complementares. Referindo-se a formados ou a trabalhadores, trata-se da tese segundo a qual os procedimentos desse tipo seriam os mais aptos a produzir, nestes, um desenvolvimento praxiológico, ou um aumento das capacidades de ação. Referindo-se aos pesquisadores e aos formadores, trata-se da convicção de que esses mesmos procedimentos constituem não só fontes de informação indispensáveis sobre os meios e as práticas profissionais, mas também verdadeiras situações de pesquisa, permitindo abordar a problemática do desenvolvimento dos adultos.

Os procedimentos de análise das práticas caracterizam-se, em seguida, pelo fato de que, em seu quadro, a acessibilidade ao agir é baseada amplamente, ou mesmo para alguns dentre eles exclusivamente, sobre a utilização da linguagem. Aí, a linguagem desempenha o papel, por um lado, de meio de tomada de consciência, pela pessoa, das propriedades do seu agir – e assim de instrumento de desenvolvimento; e, por outro lado, de meio de transmissão aos “outros” (formador, interveniente, pares, etc.) dessas mesmas propriedades. No entanto, e apesar da afirmação, para a maioria dos autores, do caráter desenvolvimental da “verbalização do agir”, os mecanismos em funcionamento concreto nessa verbalização permanecem, mais declaradamente presentes, supostos ou postos, do que tecnicamente descritos. Com algumas exceções, o processo que se encontra na base desses procedimentos constitui o objeto de uma abordagem “flexível” e não sistemática em que o papel respectivo dos diversos tipos de fontes linguísticas e sobretudo as interações entre os principais níveis da produção verbal (signos, relações predicativas, tipos de discurso, texto na sua globalidade) são apenas raramente tematizados e conceitualizados, notadamente do ponto de vista da implicação desses fenômenos no processo de atribuição de significação ao agir.

É, sobretudo, em relação a esta constatação crítica que esta obra deseja trazer uma contribuição ao domínio da formação: abordaremos aqui a problemática da interpretação da atividade de trabalho pelas instâncias e pelas pessoas nela implicadas, sob o ângulo específico das condições e das modalidades linguageiras sob as quais essa interpretação se realiza. Considerada a diversidade dos recursos linguageiros disponíveis em uma comunidade social ou profissional, nosso objetivo é, antes de tudo, melhor compreender a incidência dos formatos e das escolhas discursivas sobre o processo de interpretação do agir e, sobre a base do exame dos produtos dessa interpretação, tentar identificar certos aspectos que dependem do “trabalho linguageiro” e que são susceptíveis de produzir efeitos de ordem desenvolvimental sobre as pessoas.

Em relação à sua centralização sobre essa problemática, esta obra deseja, igualmente, fornecer argumentos em favor da articulação, para nós indispensável, entre as ciências da educação/formação e as ciências da linguagem. Porque certos procedimentos de formação repousam de fato sobre a mobilização massiva da “atividade linguageira”, no sentido que Bronckart (1997) dá a essa expressão, parece-nos essencial dotar-se de ferramentas metodológicas aptas para analisar as propriedades dessa atividade em seu desdobramento e seus efeitos. Melhor e mais vantajoso ainda será dotar-se de uma teoria da linguagem apta a compreender o estatuto da atividade linguageira no funcionamento e no desenvolvimento humanos. Como tentaremos mostrar, nem a compreensão do “que se passa” no momento do processo de análise do agir, nem a melhoria dos procedimentos da análise existentes, nem a criação de novos procedimentos podem proporcionar o impasse sobre uma reflexão, considerando o estatuto da linguagem; e isso porque a linguagem não é, de forma alguma, uma dimensão “reajuntada” (ou a reajuntar) à formação, mas, como o tem sustentado tanto Vygotski quanto Saussure, uma dimensão propriamente constitutiva da formação.

Sobre a autora:

Ecaterina Bulea é professora assistente na Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação da Universidade de Genebra, e colaboradora de Jean-Paul Bronckart, no grupo de pesquisa Langage-Action-Formation (LAF). Cursou Psicopedagogia na Universidade de Cluj (Romênia) e terminou sua formação acadêmica na Universidade de Genebra, onde se especializou em Educação, com ênfase em Didática de Francês Língua Estrangeira. Nesta universidade, fez o mestrado e o doutorado em Ciências da Educação, com a tese intitulada Le rôle de l'activité langagière dans les démarches d'analyse des pratiques à visée formative. Seus trabalhos seguem a abordagem interacionista sociodiscursiva e focalizam, principalmente, as propriedades dinâmicas da atividade linguageira e seu estatuto no funcionamento humano, investigando as contribuições da obra verdadeira de Ferdinand de Saussure à compreensão-teorização dessa proble-mática; o papel da linguagem no processo de interpretação do agir e das competências em situação de trabalho; e a problemática dos efeitos desenvolvimentais potenciais dos procedimentos de análise das práticas.

Dados Técnicos
Peso: 340g
ISBN: 9788575911556