Ler as letras: por que educar meninas e mulheres? , livro de Jane Soares de Almeida

Ler as letras: por que educar meninas e mulheres?

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Há um texto de Dermeval Saviani, já clássico, que nos ajuda a pensar sobre o sentido dos estudos históricos. Diz o autor:

Se nós assumimos a atitude filosófica, cumpre-nos desenvolver um processo de reflexão sobre os problemas que a nossa época está colocando; e se se trata de filosofia da educação, isso implica assumir a atitude de reflexão sobre os problemas educacionais que a nossa situação concreta está nos colocando. (...) No que diz respeito à História da Educação, verifica-se fenômeno semelhante. (...) Ora, a compreensão da trama da História só será garantida se forem ... [Leia mais]
Descrição
Há um texto de Dermeval Saviani, já clássico, que nos ajuda a pensar sobre o sentido dos estudos históricos. Diz o autor:

Se nós assumimos a atitude filosófica, cumpre-nos desenvolver um processo de reflexão sobre os problemas que a nossa época está colocando; e se se trata de filosofia da educação, isso implica assumir a atitude de reflexão sobre os problemas educacionais que a nossa situação concreta está nos colocando. (...) No que diz respeito à História da Educação, verifica-se fenômeno semelhante. (...) Ora, a compreensão da trama da História só será garantida se forem levados em conta os “dados de bastidores”, vale dizer, se se examina a base material da sociedade cuja história está sendo reconstituída. Tal procedimento supõe um processo de investigação que não se limita àquilo que é convencionalmente chamado de História da Educação, mas implica investigações de ordem econômica, política e social do país em cujo seio se desenvolve o fenômeno educativo que se quer compreender, uma vez que é esse processo de investigação que fará emergir a problemática educacional concreta.

Entendo, pois, que um dos sentidos de estudar o passado está no desafio de termos que compreender e refletir sobre os problemas que nos ameaçam no momento presente. Compreender e refletir para agir, criar novas respostas e, assim, no cotidiano da história, irmos construindo– em diálogo com os outros sujeitos humanos e no contexto da intrincada trama de nossos desejos, sonhos, projetos e utopias – um futuro diferente daquele presente problemático e ameaçador.

Hoje, apesar de todos os avanços realizados no sentido de superar a dominação dos homens sobre as mulheres e todas as conseqüências implicadas em tal dominação, ainda permanecem, para além das diferenças, muitas desigualdades historicamente construídas que se constituem em verdadeira ameaça não apenas para a qualidade de vida no planeta, mas à própria vida no planeta.

De fato, diz a autora deste trabalho (p. 211): No entanto, ainda resta muito por fazer, dado que as mulheres continuam a receber menores salários no mundo do trabalho, e a violência, principalmente no âmbito familiar, continua sendo uma realidade nem sempre denunciada e possui estatísticas alarmantes. Em alguns países do mundo não ocidental, a situação de subordinação e inferioridade feminina assume contornos de uma verdadeira escravidão e um atentado aos direitos humanos. Ainda hoje, “os direitos e as escolhas das mulheres em matéria de reprodução podem ser severamente restringidos a serviço de políticas nacionalistas (natalistas ou de outros tipos), ou em nome de dogmas religiosos” (Cuéllar, 1997, p. 187).

Se agregarmos a isto o fato de ainda, tanto nas famílias como nas escolas, a educação de meninos e meninas ser muitas vezes conduzida por referências estereotipadas do que é ser homem e mulher; se lembrarmos que, apesar da presença cada vez maior das mulheres nos vários campos de decisões e de poder das sociedades contemporâneas, ainda é muito maior o número de homens que dirigem nossas sociedades com base nos valores masculinos tradicionais; e se observarmos que o diálogo entre homens e mulheres, simultaneamente iguais e diferentes, é praticamente desconsiderado quando se trata de tomar decisões pertinentes à transformação ou manutenção das estruturas sociais com suas ideologias, então podemos perceber a proporção do problema das relações de gênero e suas implicações para o processo humano de desenvolvimento. E é possível pensar que nosso mundo poderia ser outro – na perspectiva dos sujeitos individuais, mas também do ponto de vista do coletivo humano – se as relações de gênero também fossem outras.

Sob o meu olhar, é este o problema que desafia Jane Soares de Almeida e que a fez escolher a feminização do magistério como seu campo privilegiado de pesquisa. E do mergulho na história das mulheres nas escolas de São Paulo – a escola católica, protestante e laica –, entre 1870 e 1930, nasceu “Ler as Letras: Por que educar meninas e mulheres?”, cujas primeiras preocupações e reflexões tiveram origem em sua pesquisa de pósdoutorado na Universidade de Harvard.

Utilizando fontes de natureza bibliográfica e documental; trabalhando na interface dos estudos sobre educação, religião e gênero; construindo um texto, ao mesmo tempo, rigoroso, claro e elegante, a autora vai mostrando como a imagética, culturalmente construída, do homem como provedor e da mulher como rainha do lar foi utilizada, por meio da religião e da educação, para manter e reproduzir não apenas a dominação masculina, mas a própria estrutura da sociedade de classes em seus diferentes momentos históricos. Mostra como o conservadorismo católico lutou para evitar, o quanto pôde, a co-educação dos sexos, mas mostra também como a abertura do protestantismo presbiteriano à mesma coeducação se fez de forma ambígua, pois se de um lado, ainda que possuindo também motivações econômicas, favoreceu a possibilidade de meninos e meninas estarem aprendendo juntos, por outro não teve força suficiente para quebrar o paradigma da educação feminina que a destinava à maternidade e aos cuidados domésticos, pois estas continuaram a ser características fortemente presentes na cultura dominante. Mesmo o movimento de feminização do magistério não conseguiu romper com tal paradigma. E é muito importante compreender como tudo isso foi construído, pois ainda estamos em tempo de desconstrução desta visão que violenta homens e mulheres, impede uma relação de parceria entre ambos e, por fim, termina por obstruir a construção de uma sociedade onde todos possam viver a inteireza humana em toda sua dignidade.

Embora os estudos históricos de Jane cheguem até a década de 1930, e ela anuncie a necessidade de aprofundar os estudos dos anos subseqüentes, suas reflexões finais tecem interessantes considerações sobre o feminismo a partir daquela data até as atuais transformações e os novos desafios que estão colocados no âmbito das relações de gênero. Conheci Jane Soares de Almeida em abril de 2004, quando de sua chegada como docente-pesquisadora ao Mestrado em Educação da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo.

Tive a oportunidade de estar à mesa com ela quando de sua primeira conferência aos nossos alunos e alunas em junho do mesmo ano: “Educação e Gênero no Brasil: a feminização do magistério”. Lembrome bem do entusiasmo e da admiração que senti ao ouvir suas idéias. Entusiasmo porque, já naquele momento, compartilhava com ela a idéia de que novos modos de ser mulher e homem precisam ser construídos. Admiração porque sentia em sua análise não somente a crítica que descontrói mitos, mas também a capacidade compreensiva necessária para lidar com os processos históricos ou, para usar uma expressão cara a Paulo Freire, a “paciência histórica”. Paciência que, se precisa ser impaciente, precisa também aprender a respeitar os tempos que as complexidades da condição humana exigem para que as mudanças aconteçam.

A leitura deste trabalho, com certeza, estimulará muitos questionamentos, reflexões e revisões sobre nossas relações. Esta provocação, nascida de uma paixão que usa a pesquisa histórica com rigorosidade e inteligência, é uma grande contribuição a este tempo carente de novas respostas e carente também de uma outra cultura, com maior capacidade de justiça, beleza e solidariedade. Que os trabalhos de Jane possam continuar. Que ela os escreva como relatórios de pesquisa, ensaios, poemas, contos ou romances.

O importante é que possam ser lidos e compartilhados por muitos. Muitos são aqueles que querem compreender o passado para construir libertação, pois como ela diz (p. 215): (...) conhecer o passado é uma forma de libertação. Isso justifica a pesquisa histórica. Destruir seus mitos é uma forma de crescimento. Estabelecer um diálogo com as fontes é tentar também compreender. Combater uma estrutura social que atribui destinos e determina funções em nome da manutenção de valores lesivos a outrem faz parte da idéia de liberdade que esse mesmo passado nos legou. Que as sementes deste trabalho possam frutificar, se espalhar e ajudar a gerar um Tempo Novo. Elydio dos Santos Neto

Docente e pesquisador do Mestrado em Educação da Universidade Metodista de São Paulo 2 Vale lembrar o que diz Morin, em Meus Demônios: “Sinto cada vez mais que somente um grande romance consegue exprimir as múltiplas dimensões da experiência humana, as vidas subjetivas interiores, os comportamentos numa sociedade, numa história, num mundo, enquanto expõe, seja pela boca dos personagens, seja sob a pena do autor, ou até mesmo implicitamente, os problemas da existência humana”.

Dados Técnicos
Peso: 520g
ISBN: 9788574961866