Lincha Tarado, livro de Dalton Trevisan

Lincha Tarado

editora: RECORD
(...) Hoje são setenta e cinco dias da morte. E vinte e dois anos do casamento. Dela não guardo queixa. Tão econômica, do dinheiro usava só a metade. Por que não gastou tudo? Não deu, ela acudia. Não tive coragem. Essa roupinha sabe quem costurou? Existe dona igual?

Candidata é que não falta. As filhas acham que devo. Viúva moça, solteira de prenda. Até com dentinho de ouro. Alguma que nem mereço. Tão enfeitada e viçosa.

Se foi plano de Deus, bem sei, devo me conformar. De dia me distraio na oficina. Mas de noite? Pensando nela me bato a noite inteira. Minha cama, nela eu deit... [Leia mais]
Descrição
(...) Hoje são setenta e cinco dias da morte. E vinte e dois anos do casamento. Dela não guardo queixa. Tão econômica, do dinheiro usava só a metade. Por que não gastou tudo? Não deu, ela acudia. Não tive coragem. Essa roupinha sabe quem costurou? Existe dona igual?

Candidata é que não falta. As filhas acham que devo. Viúva moça, solteira de prenda. Até com dentinho de ouro. Alguma que nem mereço. Tão enfeitada e viçosa.

Se foi plano de Deus, bem sei, devo me conformar. De dia me distraio na oficina. Mas de noite? Pensando nela me bato a noite inteira. Minha cama, nela eu deitava. Colcha de pena de colibri, com ela me cobria. Doce cadeira de balanço, nela me embalava. Apagada a luz, erguia a camisola. Cego, de repente eu via — no lombinho tão branco duas luas fosforescendo.

Saudade judia do corpo? Sinto a vista cansada, mal posso ler. Toda manhã faço a barba, ainda aparo o bigode. Ela morreu — e não raspei o bigode. Três dias que o olho está seco. Me esbofeteio com força. Chora, maldito.

Ela, a Maria, que não deixa o sargento.

— Já prendo esse vagabundo.

— Pelo amor de Deus, sargento. Não faça isso.

— Precisa de uma lição, o bandido.

Ao nenê faminto ela oferece o bico negro do seio:

— O culpado é o Balaio de Pulga.

Não cabe mesa nem cadeira. Estreito corredor, dois ou três caixotes, mais os bêbados — sempre lugar para mais um.

— O sargento devia fechar. É uma perdição. Do Balaio o João sai cambaleando. Verte em plena praça um rio de espuma — onde ela cai já não cresce a grama.

— Segura o hominho!

Cuidado, não é a pistolinha na mão? O brado retumbante e dois tiros certeiros na lua cheia.

— Aqui não tem macho.

Aos tombos chega em casa, mete a botinha na porta. Maria foge pela janela.
— Com o hominho ninguém pode.

O galo da vizinha não para quieto. João firma-se na cerca, fecha um olho e, no meio do clarim, tiro e queda.

— Conheceu, papudo?

De manhã a dona volta, ressabiada. Rindo feliz João cerca-a na cozinha. E de pé contra a mesa faz mais um filho.

Dados Técnicos
Páginas: 144
Peso: 222g
ISBN: 9788501017055