Literatura

Entre a urbanização e a floresta

14 julho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Manaus, foto de Pedro Martinelli

A cidade ilhada, de Milton Hatoum, foi o primeiro livro de contos do autor manauense. As histórias são compostas por relances de sua experiência vivida, através de tramas brevíssimas, marcadas por uma dicção enxuta que lhes permite ter completa nitidez e poder de iluminação. As histórias nascem dos temas mais diversos: a primeira visita a um bordel em “Varandas da Eva”; uma passagem de Euclides da Cunha em “Uma carta de Bancroft”; a vida de exilados em “Bárbara no inverno” e em “Encontros na península”; o amor platônico por uma inglesa em “Uma estrangeira da nossa rua”. Hatoum trabalha esses fragmentos da memória até que adquiram outro caráter e então, adventos ao mesmo tempo do acaso e da biografia pessoal, eles afinal possam apresentar-se como imagens exemplares do curso geral dos desejos e fracassos. Sob esse curso, a fatalidade do centro imóvel do autor: “para onde vou, Manaus me persegue”. 

A presença de estrangeiros, da memória e da morte é constante nos textos. Outra característica marcante são as surpreendentes sonoridades, como: “O comprador derrubou o muro, a casa, a acácia. Tudo”. Em tom de lembrança, parecem narrativas de situações que, no passado, foram espetaculares e que, olhadas com a distância do tempo, perderam boa parte de seu impacto.

A maioria dos contos tem como cenário a mesma Manaus cosmopolita presente na obra do autor, uma cidade habitada pela memória dos seus narradores, nativos ou estrangeiros, marcada pelo contraste entre esplendor e miséria.

O livro acaba de ser relançado pela Companhia das Letras, em formato de bolso. A editora disponibiliza um trecho para visualização.

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Trecho de “Varandas de Eva”:

“[…] Marcamos a noitada para uma sexta-feira de setembro. Gerinélson pegou o dinheiro, quis ir sozinho, de lambreta. Tio Ran nos levou em seu Dauphine, parou quase na porta, nos desejou boa noitada. Quando íamos entrar, Tarso hesitou: deu uns passos para a frente, recuou, quis e não quis entrar. Ficou mudo, mais e mais esquisito, fechou-se. Nós o desconhecemos: luz e dança não o atraíam? Minotauro puxou-o pela camisa, enganchou a mão no pescoço dele, repetindo: Bora lá, seu leso. Nosso amigo abaixou a cabeça, concordando, mas com um salto se desgarrou, e correu para a escuridão.

           Tarso, um desmancha-prazer. Deixamos o nosso amigo. A vontade não é de cada um e em cada dia? Minotauro soltou um grunhido, resmungou: Não disse? Roupinha nova é mimo pra mocinha.

           Entramos. Um caminho estreito e sinuoso conduzia ao Varandas da Eva. Aos poucos, uma sombra foi crescendo, e no fim do caminho uma luminosidade surgiu na floresta. Era uma construção redonda, de madeira e palha, desenho de oca indígena. Mesinhas na borda do círculo, um salão no meio, iluminado por lâmpadas vermelhas. Uns casais dançavam ali, a música era um bolero. Minotauro apontou uma mesinha vazia num canto mais escuro. Sentamos, pedimos cerveja, um cheiro de açucena vinha do mato. E Gerinélson, se extraviara? Na luz vermelha, quase noite, Minotauro me cutucou: uma mulher sorria para mim. Não vi mais o Minotauro, nem quis saber do Gerinélson. Só olhava para ela, que me atraía com sorrisos; depois ela me chamou com um aceno, girando o indicador, me convidando para dançar. Não era alta, mas tinha um corpo cheio e recortado, e um rostinho dos mais belos, com olhos acesos, cor de fogo, de gata maracajá. Dançamos três músicas, e dançamos mais outras, parados, apertadinhos, de corpo molhado. Ela percebeu minha ânsia, me apertou com gosto, e me levou, no ritmo lento da música, para fora do salão. Por outro caminho me conduziu a uma das casinhas vermelhas, avarandadas, na beira de um igarapé. Ficamos um tempo na varandinha, no namoro de beijos e pegações. Depois, lá dentro, ela fechou a porta, e deixou as janelas entreabertas. O som de um bolero morria na casinha avarandada.

           Ela me ensinou a fazer tudo, todos os carinhos, sem pressa, com o saber de mulher que já amou e foi amada. Passamos a noite nessa festa, sem cochilo, e muitos risos, de só prazer. Fez coisas que davam ciúme, carícias que não se esquecem. Perguntei como ela se chamava. Ela disfarçou, e disse, rindo: Meu nome? Tu não vais saber, é proibido, pecado. Meu nome é só meu. Prometo.

           A voz e a risada bastavam, minha curiosidade diminuía. Nome e sobrenome não são aparências?”

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A CIDADE ILHADA

Autor: Miltom Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 16,50 (128 págs.)

 

 

 

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