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Rumo às entranhas da terra

18 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“O sono do homem do garimpo é repleto de explosões, de baques metálicos de ferro contra rocha, do chocalho das peneiras preenchidas de areia e cascalho. Sonha mais com o árduo trabalho que precede a pedra que com a pedra dos sonhos, o garimpeiro em seu catre. Com a pedra da riqueza, sonha muito mais acordado — o corpo em seu descanso e a mente em seu torpor são mais afeitos à realidade que o garimpeiro em pleno entendimento, durante a vigília”.

Portinari, “Garimpo”, 1938

É no sertão garimpeiro que se desnovelam as tramas deste novo e belo romance de Estevão Azevedo. As diversas personagens de Tempo de espalhar pedras entrecruzam-se,, inseridas no cenário de um vilarejo que – metáfora nacional –, paulatinamente, é destruído por homens desesperadamente cobiçosos. Pois nas muitas serras ao redor daquela paisagem, quando já não há solo que não tenha sido maculado por explosões e picaretas, os homens têm a fatal percepção: as únicas superfícies ainda intocadas e que podem esconder pedras preciosas são aquelas em que suas próprias casas estão erguidas. Sob vielas e praças, sob salas, quartos, cozinhas e quintais, escondem-se suas últimas esperanças de sobrevivência ou fortuna.

Das personagens, Silvério, devoto de qualquer entidade que confirme sua predestinação, crê que irá encontrar a grande pedra, mesmo quando até as pequenas rarearam. Rodrigo, um dos filhos de Diogo, sente um desejo irresistível por Ximena, filha do maior desafeto de seu pai. Outro filho de Diogo, Joca, diz ter matado nos gerais o famigerado Rosário, e mantém uma amizade com um homem de vida pródiga e sem lastro que a justifique. Sancho, que largou o garimpo para servir ao coronel, vive amancebado com a índia que dorme em seu terreno e que só emite palavras incompreensíveis.

Personagens que não sonham com outra vida, penam em conceber sua impotência diante dos chapadões, dos vales e gerais que os delimitam e comprimem.

O título, versículo da Bíblia (Eclesiastes 3:5 – Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar), sugere a desesperança polvorosa, de um universo que se expande “cada vez mais para dentro, rumo às entranhas da terra onde homem nenhum, por mais valente que seja, se aventura”.

Estevão Azevedo nasceu em Natal. Seu romance de estreia, Nunca o nome do menino (Terceiro Nome, 2008), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Tem contos publicados em revistas e na antologia de escritores brasileiros Popcorn unterm Zuckerhut – Junge brasilianische Literatur, lançada em 2013 na Alemanha.

Em entrevista ao blog literário Amálgama, em 2009, questionado sobre a multiplicidade interpretativa que uma obra pode gerar, disse: “A obra literária tem uma característica que talvez alivie a angústia das interpretações: ela tem muitos sentidos, mas raramente tem um único sentido. Isso se for uma boa obra. Quem explicou isso com palavras melhores foi o Roland Barthes, crítico francês, mas acho que é algo tão fundamental da literatura que muita gente já deve ter dito ou escrito. Um livro escrito com uma única finalidade – fazer propaganda deste ou daquele modo de pensar, defender esta ou aquela ideologia – tem menos chance de ser um bom livro que um em que não haja essa amarra poderosíssima já criada de antemão. Claro que há bons livros cuja plataforma é clara: pensei no Germinal, de Zola. Mas ainda assim, ele me parece muito maior do que a condenação da exploração do proletariado das minas de carvão, e capaz de suscitar diversas leituras”.

O lançamento com sessão de autógrafos ocorre hoje, na Livraria da Vila, Rua Fradique Coutinho, 915, das 19h às 22h.

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Trecho:

“O afoito concede poderes, dá ao outro o controle do tempo, e no trato com Rodrigo disso Ximena muito se aproveitava. O escoicear do amante não costumava afastá-la, não temia machucar-se, até gostava, excitava-a a tarefa sempre inconclusa de domesticá-lo. Vendo o estado alterado de Rodrigo, Ximena preparou-se para, com uma palavra fugidia, hesitação fingida ou agressão controlada, meter-lhe a sela. Para sua surpresa, no entanto, Rodrigo com um safanão derrubou o cesto de sua cabeça e antes que as frutas iniciassem um passeio pela terra, segurou-lhe o pulso e começou a arrastá-la para longe dali. Ela tentou cravar os pés no chão e ensaiar um protesto, mas ele nem ouvira. Ela desistiu e começou a segui-lo.

A resistência inicial de Ximena fez com que Rodrigo se lembrasse do corpo que pouco antes não fora capaz de arrastar, e estabeleceu, nos redemoinhos de seu pensamento, um estranho vínculo entre pai e filha, o corpo de ambos desarticulado e com vocações para boneco de pano, ambos carentes da chama que os fazia vencer a atração mórbida que exercia a terra, e por isso propensos a satisfazer o vício de obedecer somente ao próprio peso. Súbito, porém, o corpo maciço de Ximena se reanimou e Rodrigo percebeu que não precisava mais se esforçar para levá-la. Seu corpo, o realizador do milagre, e por isso a ressurreição inesperada aguçou ainda mais seu desejo: para ser por ele possuído, um outro corpo renegara a morte. Depois de um bom tempo de caminhada silenciosa, num lugar de mato mais baixo e com árvores, Rodrigo conduziu-a para fora da estrada e deteve-se já bem longe de qualquer trilha. Postou-se de frente para Ximena e beijou-a, ao mesmo tempo que suas mãos erguiam a barra do vestido e sem delicadeza afastavam-lhe as pernas. A histérica necessidade de aderir ao solo, que antes a violência extraíra do corpo de Gomes e emprestara a Ximena, agora se alojava, atraída por seus movimentos coléricos, no corpo de Rodrigo, que se desengonçava. Os dois caíram. As mãos de Rodrigo machucavam-na como nunca antes, mas ela não se queixava, no ímpeto inelutável com que ele tentava saciar-se ela acreditava encontrar algo de que nem sabia estar à procura. Fora para isso que, sem o saber, ela tantas vezes o obrigara à coreografia da dissimulação: para tê-lo ainda menos humano. Essa revelação encerrou-lhe a mudez. Primeiro aos sussurros, em seguida aos berros, como se o elogiasse, ela cuspiu em Rodrigo o nome dos bichos rastejantes e seus diversos apelidos, uma lista interminável composta de palavras comuns, presentes na fala dos mateiros, e daquelas ouvidas somente uma vez, raras, usadas em outras paragens ou criadas por alguém de palavreado moldado pela ignorância, pela falta de dentes, por algum retardo ou pela bebida, e que dos recônditos de sua memória eram regurgitadas. O furor tapava os ouvidos do homem recém e excessivamente batizado e a ladainha pouco compreensível não só não era incômoda como ganhava tons de incentivo, por isso ele não reparou que o repertório se alterara e designações de tudo que fosse maculado, sórdido, imundo ou enodoado, de tudo que fosse quisto, chaga, cancro, úlcera, tumor, ferida ou câncer eram-lhe pregadas à pele. Entre gemidos, Ximena sem muito esforço repassava diversas das centenas de alcunhas do tisnado quando Rodrigo sentiu-se morrendo como nunca antes e atingiu o limite pela primeira vez. De alguma prodigiosa maneira, transformara-se em oráculo a gruta úmida de Ximena, e era aquele vislumbre de inexistência um anúncio da sentença fatal? Ximena precisou respirar, calou-se, e ficaram assim, peito de um empurrando peito do outro.

Quando se refez, Rodrigo ameaçou se afastar, mas temeu que a separação o precipitasse naquilo que pouco antes antevira no limiar de seu fôlego e de sua força, e por isso prendeu-se outra vez a ela com suas ventosas. Percebeu as folhas, os insetos, os galhos e toda uma vida mínima, quase invisível, colados ao seu suor e à saliva com que Ximena o cobrira. O corpo sujo e o sangue nas mãos e, uma vez saciado, ainda incapaz de inebriar-se com a sede e a fome e a cobiça que ela lhe despertava. Apto, portanto, a toda sorte de infortúnio que só aquela expiação impedia. Era inadiável ser novamente vítima daquela possessão, era absolutamente necessário para afastar a insânia, para limpar com mais poeira e folha e fluidos a mancha que tomava conta do corpo e do entendimento, que advinha da lembrança do assassínio; seu corpo o salvaria se novamente assumisse o controle, se o obrigasse a aceitar a pior injúria, a mais vil acusação, a perfídia travestida de amor, tudo isso apenas para fazê-lo capaz de se satisfazer por alguns míseros segundos. Era preciso que a flacidez de seu totem desaparecesse e foi por isso que Rodrigo, endiabrado, rolou sobre o corpo de Ximena e sobre ela esfregou-se durante o longo tempo entre a expulsão de seus fantasmas e a nova experiência de morte.”

(Fonte: São Paulo Review)

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TEMPO DE ESPALHAR PEDRAS

Autor: Estevão Azevedo
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 29,60 (288 págs.)

 

 

 

 

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