Literatura

Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.

14 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

A realidade é muito mais bonita do que o sonho.

A escritora Carolina de Jesus, conhecida por Quarto de despejo (1960), é uma singular figura literária: catadora de papel, tornou-se escritora e foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas que, em meio a uma reportagem, na favela do Canindé, em São Paulo, surpreendeu-se ao vê-la ameaçando seus vizinhos de que os incluiria em um livro.

Como conta Maurício Meireles, em artigo para O Globo, ele “se aproximou e pediu para ver o tal livro. Ao chegar no barraco de Carolina, pôde ver as anotações feitas pela mulher em cadernos — vários deles catados no lixo. Mais tarde, Audálio descreveu o cotidiano dela: “Se tem pão, come e dá aos filhos. Se não tem, eles choram, e ela chora também. O pranto é breve, porque ela sabe que ninguém ouve, não adianta nada”. Segundo Audálio Dantas, a obra de Carolina de Jesus “tem tanto interesse como documento quanto do ponto de vista da criação. Ela descrevia seu dia a dia com muita força, com interpretações inteligentes”.

Quarto de despejo reproduz um diário que Carolina mantinha sobre sua vida. O título veio de uma frase de Carolina: “A favela é o quarto de despejo da cidade”.

Em 1977, o jornalista e escritor Otto Lara Resende homenageou Carolina no artigo “Luzes no quarto de despejo”, publicado no jornal O Globo; segundo ele, ela era inteligentíssima, “tinha essa mistura de raiva e ternura que leva à vã tentativa de cuspir o que bloqueia a garganta e ameaça matar por asfixia, se não for dito”.

O Instituto Moreira Salles promoveu um evento em comemoração ao centenário de nascimento da autora no último dia 14 de março. O evento, “Carolina é 100”, exibiu o documentário alemão “Favela — A vida na pobreza” — filme dirigido pela alemã Christa Gottmann-Elter em 1971 e até então inédito no Brasil, foi restaurado e legendado em português pelo IMS — e promoveu um debate entre Audálio Dantas e Marisa Lajolo, pesquisadora do departamento de Letras da UNICAMP. Uma gravação do debate pode ser integralmente assistida na página do blog do IMS.

Elvia Bezerra, em artigo também publicado no blog do IMS, lembra: “Quatro anos depois do lançamento de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960, o crítico literário Otto Maria Carpeaux pensava sobre a qualidade literária dos best-sellers de fundo sociológico, entre os quais Quarto de despejo. […] “Como e até que ponto pode um romance servir de documento?”, pergunta Carpeaux no artigo intitulado “Romance e sociologia”, publicado no Correio da Manhã de 18 de julho de 1964. Naquele ano, afirma o crítico, o mundo parecia exigir não o “romance de alta categoria, mas o documento social, verídico” […]. Mas Carpeaux avalia: “Como meros documentos apreciamos obras não-literárias como Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, ou Uma aldeia anatólica, do turco Mahmud Makal”. Ao final do artigo, conclui que a importância sociológica de um romance, como documento, depende do seu valor literário”.

Segundo Germana Henriques Pereira, professora da Universidade de Brasília, em Carolina Maria de Jesus: o estranho diário da escritora vira lata – um dos poucos estudos escritos sobre Carolina de Jesus –, “Carolina é uma escritora fundamental para entender a literatura brasileira, que é feita, em sua grande maioria, de autores brancos de classe média que dominavam a língua formal. Ela mostra a outra face dessa história, que passa a ser vista do ponto de vista dela, de baixo”. 

Após o sucesso de Quarto de Despejo, a Editora Francisco Alves publicou Casa de Alvenaria (1961). Audálio Dantas analisou, sobre sua obra: “Costumo dizer que ela foi um objeto de consumo. Uma negra, favelada, semianalfabeta e que muita gente achava que era impossível que alguém daquela condição escrevesse aquele livro”; segundo ele, havia uma discussão sobre se “ela não era capaz ou, se escreveu, aquilo não era literatura”. Carolina de Jesus publicou ainda o romance Pedaços de Fome e o livro Provérbios, ambos em 1963. De acordo com Audálio, todos esses títulos foram custeados por ela e não tiveram vendas significativas. Após a morte da escritora, em 1977, foram publicados o Diário de Bitita, com recordações da infância e da juventude; Um Brasil para Brasileiros (1982); Meu Estranho Diário; e Antologia Pessoal (1996).

Em 1961, Carolina também lançou um disco – “Quarto de Despejo: Carolina Maria de Jesus cantando suas composições”. Que pode ser integralmente ouvido na Rádio Batuta.

 

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Trechos:

“… De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua. (…) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. Êle deu-me 50 cruzeiros e eu paguei a costureira. Um vestido que fez para a Vera. A Dona Alice veiu queixar-se que o senhor Alexandre estava lhe insultando por causa de 65 cruzeiros. Pensei: ah! O dinheiro! Que faz morte, que faz odio criar raiz”.

 

“… Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Êles respondia-me:

— É pena você ser preta.

Esquecendo-se êles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça êle já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta”.

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QUARTO DE DESPEJO – DIÁRIO DE UMA FAVELADA

Autor: Carolina Maria de Jesus
Editora: Ática
Preço: R$ 35,50 (176 págs.)

 

 

 

 

 

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