matraca

Por entre as cópias

8 dezembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Marcel Duchamp

“A pesquisa dos textos sagrados sejam eles Marx ou Mao, Guevara ou Rosa Luxemburgo tem antes de mais nada a seguinte função: restabelecer uma base de discurso comum, um corpo de autoridades reconhecíveis sobre as quais instaurar o jogo das diferenças e das propostas em conflito. Tudo isso com uma humildade completamente medieval e exatamente oposta ao espírito moderno, burguês e renascentista; não tem mais importância a personalidade de quem propõe, e a proposta não deve passar como descoberta individual, mas como fruto de uma decisão coletiva, sempre e rigorosamente anônima. Desse modo uma reunião em assembléia se desenvolve como uma questio disputata: a qual dava ao forasteiro a impressão de um jogo monótono e bizantino, enquanto nela eram debatidos não só os grandes problemas do destino do homem, mas as questões concernentes à propriedade. à distribuição da riqueza, às relações com Príncipe, ou à natureza dos corpos terrestres em movimento e dos corpos celestes imóveis”.

 

Viagem na irrealidade cotidiana, de Umberto Eco, tece uma crítica ao falso e à cópia. A ironia da “cópia autêntica” é investigada pelo grande professor e intelectual italiano, à guisa de uma viagem pela costa Oeste dos Estados Unidos, visitando museus e mostrando o quanto há de “falsidade” no mundo contemporâneo, em geral, na cultura americana, em particular.

Eco perpassa analiticamente exemplos variados: as reproduções, em museus, de obras primas cujos originais encontram-se em outras partes do mundo; as construções de réplicas arquitetônicas, como o castelo construído na Califórnia com peças numeradas vindas da Europa e cujos cômodos foram preenchidos com cópias de pinturas e objetos; uma estátua de cobre na Grécia, que é cópia da “cópia autêntica” romana – cujo original com o tempo já se perdeu; a artificialidade da Disneylândia, cujas filas ele compara às do gado no corredor de abate; a transmissão manipulada das notícias pelo formato variado e efêmero dos telejornais.

Nesta Viagem, Eco analisa os diversos significados decorrentes da noção de cópia e identifica o quanto ela é entranhada na formação de valores, estéticos e morais.

Seu movimento argumentativo encontra origem da questão no pensamento medieval e na noção de relíquia, cuja estrutura pende sobre a relação em torno do original. Nossa época seria uma nova Idade Média. Diz Eco:

“Dessa nova Idade Média já se disse que será uma época de ‘transição permanente’ na qual serão adotados novos métodos de adaptação: o problema não será tanto o de conservar cientificamente o passado quanto o de elaborar hipóteses sobre o aproveitamento da desordem, entrando na lógica da conflitualidade. Nascerá, como já está nascendo, uma cultura da readaptação contínua, nutrida de utopia. Foi assim que o homem medieval inventou a universidade, com a mesma desinibição com que os clérigos vagantes de hoje a estão destruindo: e talvez transformando. a Idade Média conservou a seu modo a herança do passado não para hibernação, mas para contínua retradução e reutilização, foi uma imensa operação de bricolage em equilíbrio instável entre nostalgia, esperança e desespero.

“Sob sua aparência imobilista e dogmática foi, paradoxalmente, um momento de ‘revolução cultural’. O processo todo foi naturalmente caracterizado por pestes e massacres, intolerâncias e morte. Ninguém diz que a nova Idade Média representa uma perspectiva de todo alegre. Como diziam os chineses para maldizer alguém: ‘Que você possa viver numa época interessante'”. 

A Idade Média seria, para o autor, espécie de texto histórico, subjacente à própria realidade semântica do mundo, à própria irrealidade cotidiana. Segundo ele, “foi ali que amadureceu o homem ocidental moderno, e é nesse sentido que o modelo de uma Idade Média pode servir para compreender o que está acontecendo nos nossos dias: à queda de uma grande ‘Pax’ se sucedem crises e períodos de insegurança, chocam-se civilizações diferentes e se esboça lentamente a imagem de um homem novo. Ela se tornará clara apenas mais tarde, mas os elementos fundamentais já estão ali em ebulição, num dramático caldeirão”. Para Eco, nada “é mais semelhante a um mosteiro perdido no campo, cercado e rodeado por hordas bárbaras e estranhas, habitado por monges que nada têm a ver com o mundo e desenvolvem suas pesquisas particulares) que um campus universitário norte-americano”. Sua comparação prossegue, aponta: “a outra Idade Média produziu no fim um Renascimento que se divertia em fazer arqueologia, mas de fato a Idade Média não fez obra de conservação sistemática, mas sim de destruição casual e conservação desordenada”. A nossa época, nova Idade Média, é marcada pela transição permanente. O maior problema dela é “elaborar hipóteses sobre o aproveitamento da desordem, entrando na lógica da conflitualidade”, de que nascerá, diz, “uma cultura de readaptação contida, nutrida de utopia”.

No Brasil, Viagem na irrealidade cotidiana foi publicado em 1984 pela Nova Fronteira, com tradução de Aurora Bernardini e Homero Freitas de Andrade; após esgotado, há anos, nunca foi reeditado.

 

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Trecho:

“O político argumenta com sutileza, apoiado pela autoridade, para fundamentar em bases teóricas uma práxis de formação; o cientista tenta restituir uma forma, através de classificações e distinções, a um universo cultural explodido (como o greco-romano) por excesso de originalidade e pela confluência conflitante de contribuições demasiado díspares, Oriente e Ocidente, magia, religião e direito, poesia, medicina ou física. Trata-se de mostrar que existem abscissas do pensamento que permitem recuperar modernos e primitivos sob a égide de uma mesma lógica. Os excessos formalistas e a tentação anti-histórica do estruturalismo são os mesmos das discussões escolásticas, assim como a tensão pragmática e modificadora dos revolucionários, que então eram chamados reformadores ou hereges tout court, deve (como devia) apoiar-se em cima de furiosas diatribes teóricas e cada nuança teórica implicava uma práxis diferente. Até as discussões entre São Bernardo, partidário de uma arte sem imagens, depurada e rigorosa, e Suger, partidário da catedral suntuosa e pululante de comunicações figurativas, têm correspondência, em variados níveis e chaves, com a oposição entre construtivismo soviético e realismo socialista, entre abstratos e neobarrocos, entre teóricos puristas da comunicação conceitual e partidários mcluhanianos da aldeia global da comunicação visual”.

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VIAGEM NA IRREALIDADE COTIDIANA

Autor: Umberto Eco
Editora: Nova Fronteira
Preço: R$ 28,00 (354 págs.)

[disponível apenas em sebos]

 

 

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