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O poeta em que o verbo fez-se carne

18 novembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Quantas vezes as carapinhas hão de embranquecer
Para que os canaviais possam dar mais doçura à alma Humana?

Lasar Segall

Acaba de ser republicado o livro Poemas negros de Jorge de Lima, em edição que recupera a primeira, publicada em 1947, com ilustrações de Lasar Segall e prefácio de Gilberto Freyre. São poemas marcados por uma envolvente musicalidade e apelo aos sentidos. Localizados entre o engenho e o navio negreiro, formam uma história poética do negro no Brasil, da influência do escravo na cultura brasileira, também da crueldade do tratamento servil a que foram submetidos. Jorge de Lima ultrapassa o folclórico pitoresco e recria a paisagem nordestina, canta as lavadeiras na lida, descreve o ar “duro, gordo, oleoso” da madorna, o chamado da “Negra Fulô” pela sinhá, para a abanar, pelo sinhô, para a açoitar.

Segundo Vagner Camilo, professor de Letras Clássicas e Vernáculas na USP, responsável pelo texto acrescido como posfácio à edição, conforme diz no artigo “Jorge de Lima no contexto da poesia negra americana”, os poemas falam “dos seres que povoam seu universo afro-poético em termos de personagens (e situações) típicas, equiparáveis ao universo pictórico de Segall (não só os óleos sobre tela, mas também os grafites sobre papel), embora no caso de Poemas negros várias delas oscilem entre o tipo e a individualidade, incluindo-se aquelas que são evocadas pela memória da infância do poeta, como Celidônia, Zefa Lavadeira, Maria Diamba e Benedito Calunga”. Sobre o prefácio “daquele cujo pensamento, afinal de contas, havia atuado, em boa medida, na gênese desses mesmos versos”, Vagner Camilo no mesmo artigo analisa: “O prefácio de Freyre interessa por mais de um motivo, além, é claro, do que revela sobre a poesia negra de Jorge de Lima. Primeiramente, o prefácio surpreende por não ostentar a antiga animosidade para com o modernismo paulista. […] Tamanho empenho já foi interpretado como decorrência do ressentimento pela perda do poder econômico e político da região nordestina justamente em benefício do Centro-Sul e, em especial, São Paulo. Buscava-se, assim, de modo agônico, uma compensação, no plano da cultura, a essa perda, reivindicando para o Nordeste o papel de depositário das raízes mais autenticamente brasileiras, porque não sujeito, como o Centro-Sul, às influências vindas de fora (cf. Almeida, 1999; D’Andreia, 1992). Sem deixar de insistir na importância e distinção de “um movimento nordestino de renovação das letras, artes e cultura brasileira”, o fato é que o prefácio de Freyre fala agora em termos de troca, de reciprocidade. Uma via de mão dupla entre o modernismo paulista e o ‘movimento do Nordeste’”. Ainda sobre o prefácio, o professor ressalta um “movimento solidário”, uma “óptica fraterna”, que “já havia sido assinalada de passagem por Alfredo Bosi a propósito do poema que dá fecho à coletânea (“Olá! Negro”), observando, inclusive, que ela irmana a poesia negra à bíblico-cristã de Jorge de Lima na “assunção das dores do oprimido, socialismo inerente a toda interpretação radical dos Evangelhos” (Bosi, 1975, p.503). E será evidenciando essa “cordialidade crioula”, cristã ou, mais especificamente, “franciscana”, que Freyre buscará rebater a acusação de gulodice de pitoresco, endereçada aos poemas afro-nordestinos de Jorge por aqueles que, segundo o prefaciador, são os menos autorizados para fazê-la, tal a sua pobreza de experiência genuinamente brasileira; pois são cosmopolitas pouco sensíveis aos característicos mais profundos da vida, do passado e da paisagem das nossas várias regiões; geômetras que desconhecem as intimidades de nossa paisagem humana”.

Gilberto Freyre, no prefácio, fala portanto da “necessidade de reconhecer-se um movimento distintamente nordestino de renovação das letras, das artes, da cultura brasileira”, um movimento capaz de fornecer ao modernismo majoritariamente paulista-carioca “valores já quase despercebidos de outras partes do Brasil”, de riqueza “constituída por elementos genuinamente brasileiros, essenciais ao desenvolvimento da nossa cultura em expressão honesta do nosso éthos, da nossa história e da nossa paisagem e em instrumento de nossas aspirações e tendências sociais como povo tanto quanto possível autônomo e criador”. Para o sociólogo, dente tais valores, “nenhum mais cheio de substância particularmente brasileira , ao mesmo tempo que humana em sua essência, que as tradições amadurecidas, nas terras de massapé do Nordeste à sombra das casas-grandes, das igrejas, dos sobrados, das senzalas, dos mocambos, das palhoças, das mangueiras, dos coqueiros, dos cajueiros desta região; e resultado do contato de europeus com índios e, principalmente, com africanos. Com malungos, mucamas, babás, cunhas, columins. Contato democratizante dos brancos e degradante dos negros”.  

“Foi esse principalmente o mundo em que Jorge de Lima, em 1922-23, poeta já precocemente feito, mas de modo nenhum estratificado em cinzelador milnovecentista de sonetos elegantes recolhidos com avidez pelos pedagogos organizadores de antologias, tornou-se, sob novos estímulos vindos do Sul, da Europa e dos Estados Unidos, o grande poeta, o poeta por excelência. […] Em Jorge de Lima o verbo fez-se carne neste sentido: no de sua poesia afro-nordestina ser realmente a expressão carnal do Brasil mais adoçado pela influência do africano. Jorge de Lima não nos fala dos seus irmãos, descendentes de escravos, com resguardos profiláticos de poeta arrogantemente branco, erudito, acadêmico, a explorar o pitoresco do assunto com olhos distantes de turista ou de curioso. De modo nenhum. Seu verbo fez-se carne: carne mestiça”.     

A Cosac Naify disponibiliza trecho para leitura.

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MARIA DIAMBA

Para não apanhar mais
Falou que sabia fazer bolos
Virou cozinha.
Foi outras coisas para que tinha jeito.
não falou mais.
Viram que sabia fazer tudo,
Até mulecas para a Casa-Grande.

Depois falou só,
Só diante da ventania
Que ainda vem do Sudão;
Falou que queria fugir
Dos senhores e das judiarias deste mundo
Para o sumidouro.

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POEMAS NEGROS

Autor: Jorge de Lima
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 27,93 (192 págs.)

 

 

 

 

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