fotografia

Pierre Verger, “50 anos de fotografia”

3 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Quando tudo o que se chamava arte se paralisou, o fotógrafo acendeu sua lâmpada de mil velas e gradualmente o papel sensível à luz absorveu o negrume de alguns objetos de consumo. Ele tinha descoberto o poder de um relampejar terno e imaculado, mais importante que todas as constelações oferecidas para o prazer dos nossos olhos.

– Tristan Tzara.

A fotografia assegura a possibilidade de um registro temporal autônomo na sua maneira de apreensão do singular, é uma prática discursiva, a um tempo linguagem artística e histórica. O tempo que a fotografia capta e preserva é um tempo de gênese ontológica, tempo enfim incontingente. Eis porque a fotografia pode ser lida como texto.

As fotografias de Pierre Verger são narrativas condensadas, de certa forma pairam: nelas, há um movimento infinito plasmado, pois ecoam, em si, a captação profunda e imediata do âmago das culturas que registram, culturas encarnadas nos olhares, gestos, cenas – precisos e líricos. 

O trabalho fotográfico de Verger desenvolveu-se através de uma linguagem própria e com um espírito inconfundível. Articuladas a interesses antropológicos, as imagens captadas por sua Rolleiflex são documentos historiográficos, mas de maneia alguma limitam-se a isso; são acontecimentos culturais registrados sob uma poética que traduz uma serena intimidade com o mundo. Os temas humanos em suas fotografias perduram um olhar inteligente, sintético e metafórico. São imagens líricas, que encerram em si um tempo articulador do entendimento humano com a natureza das coisas, o tempo do olhar, do andar, pedalar, navegar: um tempo que se dá tempo de ser, a essência do ser cultural.

 

“[…] Detive-me, como é natural, na frase: “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim das veredas que se bifurcam”. Compreendi quase imediatamente; […] a frase “vários futuros (não a todos)” me sugeriu a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço” (Borges, “O jardim de veredas que se bifurcam)

No conto de Borges, o escritor “Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam”. As fotos de Verger de certa forma criam essa ilusão historicamente labiríntica, a possibilidade de diversos tempos que se proliferam, pois resguardam momentos da humanidade, em visadas exigentes e profundas, e, assim, os resgatam para um presente infinito. É a procura de um lugar em que o futuro se esconde, hoje, nos momentos extintos mas captados pela imagem, equilibrada sobre a realidade. A fotografia é indício de um real que escapa. Mas que nela, perdura.

De acordo com a crítica de arte Rosalind Krauss, “a “presença da imagem fotográfica sempre é modificada pelo seu estatuto de testemunha, traço, vestígio. No próprio centro de seu poder de representação reside esta mensagem da ausência (do real)”. Através da fotografia, assim, o original e a cópia são colocados em igualdade, pois “ao desvendar no cerne de todo gesto estético a multiplicidade, o fictício, a repetição e o estereótipo, a fotografia desmonta a possibilidade de diferenciar o original da cópia, a ideia prima de suas servis imitações” (Krauss, “Nota sobre a fotografia e o simulacro”). O trabalho fotográfico realizado por Pierre Verger, reunido em 50 anos de fotografia, registra características culturais elementares e esvanece a noção de simulacro. Trata-se de um trabalho em que a repetição é diferenciadora, graças ao caráter temporal que ela carrega, de maneira que o trabalho compreende o desenvolvimento de uma verdadeira arqueologia cultural. Uma linguagem que em sua essência traduz outras. Análoga ao exemplo que Foucault formulou ao descrever a revelação que a arqueologia promove, nos arquivos que analisa, dos estatutos de suas formações discursivas, as quais

“não devem ser entendidas como um conjunto de determinações impondo-se do exterior ao pensamento dos indivíduos ou habitando-o em seu interior e como que de antemão; constituem antes o conjunto das condições segundo as quais se exerce uma prática, segundo as quais essa prática propicia enunciados parcial ou totalmente novos e segundo as quais, enfim, ela pode ser modificada. Trata-se menos dos limites colocados à iniciativa dos sujeitos do que o campo em que ela se articula (sem constituir seu centro), das regras que adota (sem as ter inventado nem formulado), das relações que lhe servem de suporte (sem que delas seja o resultado final nem o ponto de convergência). Trata-se de fazer as práticas discursivas aparecerem em sua complexidade e sua espessura: mostrar que falar é fazer alguma coisa – diferente de expressar o que se pensa” (Foucault, L’Archéologie du Savoir).

O registro de culturas, que acompanhamos pelas páginas de 50 anos de fotografia, é um testemunho de vida, um diário de viagem e um documento histórico, simbolicamente arqueológico e profundamente antropológico. “Na fotografia, imagem natural de um mundo que não sabemos ou não podemos ver, a natureza, enfim, faz mais do que imitar a arte; ela imita o artista”, como diz André Bazin, e a existência do objeto fotografado participa “da existência do modelo como uma impressão digital. Com isso, ela se acrescenta realmente à criação natural, ao invés de substituí-la por uma outra”. Para o crítico francês, a

“a originalidade da fotografa em relação à pintura reside, pois, na sua objetividade essencial. Tanto é que o conjunto de lentes que constitui o olho fotográfico em substituição ao olho humano denomina-se precisamente “objetiva”. Pela primeira vez entre o objeto inicial e a sua representação nada se interpõe, a não ser outro objeto. […] Só a objetiva nos dá, do objeto, uma imagem capaz de “desrecalcar”, no fundo do nosso inconsciente, esta necessidade de substituir o objeto por algo melhor que um decalque aproximado: o próprio objeto, porém liberado das contingências temporais” (Bazin, “Ontologia da imagem fotográfica”).

No trabalho de Verger, a experiência cultural harmoniza-se à autonomia da singularidade. Seus anos de formação, sobretudo entre os anos de 1932 e 1934, renderam-lhe quase todas as articulações e direcionamentos do restante de sua trajetória fotográfica. Ele conta: “Tirei minhas primeiras fotografias aos trinta anos, em 1932. Foi naquele ano que fiz, com um vendedor de aparelhos fotográficos de segunda mão, a troca do velho verascópio Richard da família por uma Rolleiflex que também não era tão nova assim”. O início tardio foi compensado pela rapidez no direcionamento do olhar e na formulação de uma poética e no direcionamento do olhar ao objeto de interesse. Verger, apesar de inicialmente seduzido “pela extraordinária nitidez dos detalhes que sobressaíam nas fotos tiradas de tão curta distância” que lhe permitiam “valorizar o contraste do rugoso e do liso, do brilhante e do fosco, o veio da madeira, a espuma de uma onda vindo morrer na areia granulosa de uma praia”, entre outros detalhes, nas primeiras páginas do livro lembra: “Só tirei esse tipo de fotografia durante a minha primeira excursão, na qual percorri mil e quinhentos quilômetros a pé na Córsega. Felzmente, meu gosto evoluiu e passei a dirigir um olhar menos míope sobre o mundo nos anos que se seguiram”. O “olhar menos míope” substituiu o objeto de interesse por trás das lentes:

“A Rollei clicava, com ou sem lente de aproximação. Daí resultavam algumas fotos ainda influenciadas pelo meu primeiro entusiasmo, como um amontoado de cabos rudes e ásperos ou o gato de bordo, mas também o rosto dos membros da tripulação composta de gente de várias províncias francesas e das mais diversas etnias, marinheiros e mecânicos corsos e bretões, serventes e açougueiros marselheses, foguistas argelinos ou das ilhas Comores e cozinheiros malgaxes”.

A partir de então, Verger seguiu em viagens ao redor do mundo, fotografando pessoas e as mais variadas manifestações culturais. Visitou as civilizações do Pacífico, viajou pelos Estados Unidos, pelo Japão, pela China, fez uma viagem de bicicleta de cerca de três mil e quinhentos quilômetros pela Espanha, depois pedalou do sul da França até a Itália; viajou pela África, pelas Antilhas, pelo México, pelas Filipinas, pela Indochina, pela Guatemala, Equador, Argentina, Peru, Bolívia, Paramaribo, Haiti, Cuba e chegou ao Brasil. No Brasil, conheceu o candomblé e, na Bahia, no terreiro Opô Afonjá, teve a cabeça consagrada ao orixá do trovão, Xangô, pela grande mãe de santo Mãe Senhora. Assim incluído no mundo do candomblé, Verger viajou à África, onde foi iniciado na adivinhação, tornou-se babalaô, pai-do-segredo, e ganhou um novo nome, Fatumbi, que significa “nascido de novo graças a Ifá” (ao sistema de adivinhação, denominado Ifá). Dos anos que viveu na África, ele armazenou dados e observações para a realização de importantes estudos sobre os intercâmbios entre as religiões africanas e o Brasil, inclusive a tese Fluxo e refluxo. Durante muitos anos, Verger promoveu um intenso diálogo entre o Brasil e a África, reforçando a legitimação da tradição africana, sobretudo em Salvador, não somente nos cultos religiosos, mas na própria construção de uma identidade popular. Ele conta, quando chegou ao Brasil, em 1946:

“Fiquei muito impressionado pela beleza das cerimônias que vi na Bahia nas casas de culto africanas e pela extraordinária riqueza das tradições orais e dos mitos que servem de suporte àquela religião. Gostei de viver naquele mundo do candomblé, não por simples curiosidade, mas porque, além da simpatia que sentia pelos descendentes de africanos, não era insensível ao papel desempenhado por essa religião para manter sua identidade e sua fé, malgrado as tristes condições nas quais haviam vivido seus pais. Constatei que, em vez de sentirem humilhação por serem descendentes de escravos trazidos à força para o Novo Mundo, tinham orgulho de suas origens”.

Como disse Walter Benjamin, “renunciar ao homem é para o fotógrafo a mais irrealizável de todas as exigências. Quem não sabia disso, aprendeu com os melhores filmes russos que mesmo o ambiente e a paisagem só se revelam ao fotógrafo que sabe captá-los em sua manifestação anônima num rosto humano” (Benjamin, “Pequena história da fotografia”). As fotos de Verger são humanamente tocantes, registram os homens e o Homem, as culturas e a humanidade. É notável a dignidade que seus enquadramentos conferem aos retratados e às culturas que eles representam e encarnam; nisso concentra-se grande parte de seu valor antropológico. São fotos fortes, sensoriais, ricas em nuances de texturas e sombras, de múltiplas matizes, que trabalham na formação do pathos do trabalho, tornando, nele, a representação da natureza humana tangível e profunda.

Único livro autobiográfico de Pierre Verger, publicado pela primeira vez em 1988 e indisponível há mais de vinte anos, 50 anos de fotografia foi reeditado pela Fundação Pierre Verger. A nova edição tem novo formato, mas manteve os textos e as fotos originais, além da inclusão de algumas novas imagens. Infelizmente na reedição a maior parte das ampliações desfocaram as fotos.

“A imagem pode ser nebulosa, descolorida, sem valor documental, mas ela provém por sua gênese da ontologia do modelo; ela é o modelo” – Bazin.

 

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