Literatura

Entro em cena em meu olhar

4 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone

Janelas se iluminam. Dou um passo na sacada…

Entro em cena em meu olhar.

Minha presença se percebe como o igual e o oposto de todo este mundo luminoso que quer convencê-la de que ele a rodeia. Eis aqui todo o choque entre a terra e o céu. O instante quer me prender e o lugar acredita me cercar…

Mas o lugar com seu instante não é, para o espírito, senão um incidente – um acontecimento – um demônio como um outro… Todo esse dia, um demônio de minha noite pessoal. […] – Paul Valéry.

Esboço, Edgar Degas

Esboço, Edgar Degas

Diz o próprio Paul Valéry, sobre seu Alfabeto:

Foi-me pedido, há alguns anos, que escrevesse vinte e quatro fragmentos de prosa (ou de versos variados) cuja primeira palavra deveria, em cada um, começar por uma das letras do alfabeto. Alfabeto incompleto? Sim. É que se tratava de utilizar vinte e quatro letras ordenadas, em xilogravura, que se pretendia publicar com o auxílio de alguma literatura – pretexto e causa aparente do álbum pensado. Essas condições não me intimidam. O gravador havia omitido duas letras, as mais incômodas, aliás, as mais raras em francês: o K e o W. Restam XXIV caracteres. Veio-me a ideia de ajustar essas XXIV peças a serem escritas às XXIV horas do dia; a cada uma das quais se pode bastante facilmente fazer corresponder um estado e uma ocupação ou uma disposição da alma diferente; decisão bastante simples.

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“A vida dos homens é o seu caráter”

28 dezembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone
Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, “Goethe à janela de sua casa romana”

Johann Heinrich Wilhelm Tischbein, “Goethe à janela de sua casa romana”, 1787

A Editora Unesp acaba de trazer de volta às livrarias brasileiras a notória Viagem à Itália, de Goethe, com nova tradução, realizada por Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas.

A Itália, para Goethe, simbolizava o sul quente e apaixonado, lugar onde o passado clássico ainda se mantinha vivo em espaços, símbolos e hábitos, para os quais procurou significado, redescobrindo-se nas interpretações que marcaram o percurso. A viagem deu-se entre setembro de 1786 e abril de 1788 e, realizada em segredo, quase clandestina, inscrevia-se no imperativo cultural, comum à época, de conhecer o solo de Horácio, Petrarca e Leonardo. A infinidade de assuntos dos quais se ocupou ao longo dessa permanência, porém, extravasa a arte e reflete os múltiplos interesses de Goethe – a tal ponto que João Barrento, responsável pela mais recente tradução do texto publicada em Portugal, cita Emil Staiger para sublinhar a “metamorfose que quase põe em perigo a unidade da pessoa do autor na nossa imaginação”. As idiossincrasias, anseios, e obsessões do autor, que no início da viagem contava com 37 anos, emergem sob o texto, desestabilizando a dicção clássica encontrada por aqueles que desejam ver na obra o ponto de passagem, o momento em que o artista amadurece por completo seu classicismo. O texto só foi publicado por Goethe muitos anos após a viagem; o Goethe “clássico” proverá o texto da temporada italiana de uma dicção variada e ao mesmo tempo autoral, unindo observações colhidas no calor da hora, ao lado de longos trechos extraídos de obras de outros viajantes que o precederam, além de reproduzir sua correspondência e alguns textos de terceiros, como do pintor Tischbein e do escritor Karl Philipp Moritz, ambos companheiros de jornada.

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Literatura

O tempo passa

22 dezembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Nesse calor, o vento enviou de novo seus espiões à casa. As moscas trançavam uma rede nos quartos ensolarados; as ervas daninhas que tinham crescido junto à vidraça, batiam metodicamente, à noite, na janela. Quando a escuridão caía, o clarão do farol, que nas noites escuras se estendia com autoridade sobre os tapetes, traçando seu desenho, vinha agora misturado ao luar, deslizando suave e furtivamente como se depositasse sua carícia e se demorasse e olhasse amorosamente outra vez.”

Turner, "Waves Breaking against the Wind"

Turner, “Waves Breaking against the Wind”

O tempo passa” é o título da segunda das três partes que compõem o romance Ao Farol, de Virginia Woolf. No início de 1927, ano da publicação do livro na Inglaterra, Virginia enviou uma versão dessa parte para ser publicada, em tradução, em uma revista francesa e o original em inglês permaneceu inédito até 1983, quando o pesquisador James M. Haule o descobriu. Esta versão – que difere significativamente da que foi incluída em Ao Farol e cuja autonomia parece ter sido reconhecida pela própria Virginia – foi publicada em edição bilíngue no Brasil em 2013, pela editora Autêntica, com tradução de Tomaz Tadeu.

Trata-se de um texto de beleza pungente. O fluxo de consciência perpassa a progressiva deterioração da casa de praia na qual a família Ramsay passava suas férias de verão. A poesia da narrativa ramifica metaforicamente a deterioração da casa em temporalidades diversas, desdobra-a em memórias idas, que a imagem constante do mar enfatiza, do mofo dos objetos esquecidos à afirmação de sua própria eternidade, onda após onda.

“A quietude e a beleza apertaram-se as mãos no quarto; entre os jarros com suas mortalhas e as cadeiras revestidas, nem mesmo a prece do vento, o delicado nariz dos úmidos ares marinhos, roçando, farejando, iterando e reiterando suas perguntas – ‘Irão vocês extinguir-se? Irão vocês perecer?’ – conseguem perturbar essa paz, esta indiferença, este ar de integridade, em que não há qualquer compromisso, em que a verdade estava descoberta, como se a pergunta que faziam não precisasse de nenhuma resposta: nós permanecemos”. Continue lendo

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A vida sensível

21 dezembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone
Mark Rothko, “Yellow Over Purple”, pintura de 1956

Mark Rothko, “Yellow Over Purple”, pintura de 1956

No profundo ensaio A vida sensível, o filósofo italiano Emanuele Coccia investiga a sensibilidade, a partir do princípio de que o sensível, porque definidor de formas e limites da vida, é imagem. Através deste princípio, Coccia propõe uma nova compreensão da vida animal: segundo ele, a humanidade não é uma das categorias da animalidade, mas o seu aprofundamento, uma faculdade particular da animalidade, caracterizada pela capacidade de se relacionar com as imagens – visuais ou olfativas, gustativas, auditivas, táteis, mentais, que compõem um campo, ao qual chama “medialidade”: para o filósofo, corpo e imagem fazem parte da mesma medialidade, a vida sensível. Aquilo que conhecemos por mundo é esta esfera da sensibilidade, composta apenas por imagens.

Para acompanhar a reflexão do filósofo, deve-se aceitar, portanto, as premissas de que a imagem é o sensível e o homem é um ser sensível que vive na esfera da sensibilidade e, mesmo, por ela. Conforme aponta o escritor e crítico de arte Jean-Louis Poitevin, em artigo publicado pela revista francesa TK-21 La Revue – e apresentado no seminário “‘Vivre comme une image’- Images et politique”, em 2012 –, é possível formular “de maneira humorística uma espécie de silogismo que poderia resumir este livro: a imagem é o sensível, o homem é o sensível, portanto o homem é imagem ou vive como uma imagem”. Viver como imagem, segundo o crítico, é questão técnica e ética, artística e estética.

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Do corpo ao pó

13 dezembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone
Fotografia de Dona Damiana no tekoha Apyka´i, em 2015

Fotografia de Dona Damiana no tekoha Apyka´i, em 2015

Do corpo ao pó – crônicas da territorialidade kaiowá e guarani nas adjacências da morte, do antropólogo Bruno Martins Morais, delineia-se em torno de uma pergunta crucial à reflexão sobre a violência, em todo seu sentido político geral e, em particular, em seu uso sobre a territorialidade indígena: como os Kaiowá e Guarani se relacionam com a morte e a com a terra, no contexto de extrema violência do Mato Grosso do Sul?

O autor sobrepõe duas categorias territoriais, uma que diz respeito à própria concepção indígena e, outra, que subentende as políticas de Estado que historicamente vincularam os Kaiowá e Guarani a um território específico. Sua investigação etnográfica percorre, a partir de reflexões sobre a violência e a morte, esses dois modelos de territorialidade. A perspectiva de Bruno Morais apresenta um panorama da disposição territorial atual dos Kaiowá e Guarani, com foco no corpo, pois, como ele diz, “impondo uma segregação no espaço, a colonização impôs aos índios uma disciplina corporal. É como estratégia de resistência a essa disciplina que eles tentam reorganizar o espaço a partir dos acampamentos de retomada. A relação com a morte e com os mortos emerge como um eixo orientador da vida sobre o território, e os dois últimos capítulos vão dedicados a etnografar essas relações e as concepções de pessoa, de corpo, e os elementos escatológicos e proféticos envolvidos nos ritos funerários. Dividido entre uma parte substantiva, e uma parte imaterial, o corpo aparece no fim como o elemento organizador da produção e da reprodução da vida social, da territorialidade, e do cosmos. Do mesmo modo, é o corpo o eixo organizador da destruição do que há nesta terra. Traduzindo um registro no outro, os Kaiowá e Guarani operam uma crítica histórica que sugere uma conciliação entre as teorias já não como opostas, mas como complementares e variadas em perspectiva”.

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Ele que o abismo viu

8 dezembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone
Relevo que representa o deus Marduk, herança babilônica, atualmente no Museu do Louvre.

Relevo que representa o deus Marduk, herança babilônica, atualmente no Museu do Louvre.

O mais antigo registro literário conhecido – anterior a Homero, a Hesíodo e aos textos bíblicos –, a Epopeia de Gilgámesh – Ele que o abismo viu, acaba de ganhar uma excelente edição no Brasil, publicada pela editora Autêntica, com texto traduzido do acádio e anotado pelo professor Jacyntho Lins Brandão.

Ele que o abismo viu é uma das versões do mito de Gilgámesh, atribuída a Sin-léqi-unnínni (séc. XIII a.C.), e tida como a mais completa e importante desta tradição acádia. O poema babilônico foi preservado em tabuinhas de argila que foram descobertas entre 1872 e 2014. O longo texto é ainda fragmentário, porém a edição traduz sua mais ampla reconstrução, baseada em versões críticas recentes que substituíram as anteriores.

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Um dizer rodeado de silêncio

1 dezembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“[…] seu destino eram as letras”.

Miguel Cabrera, "Retrato de Sor Juana Inés de la Cruz"

Miguel Cabrera, “Retrato de Sor Juana Inés de la Cruz”

Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé, de Octavio Paz, acaba de ser lançado no Brasil, em co-edição entre a Editora Ubu e o Fondo de Cultura Económica, com tradução de Wladir Dupont.

Trata-se de um ensaio volumoso, profundo e de difícil classificação: o texto de Paz amalgama biografia, história, antropologia e crítica literária para abarcar a relevância da figura de Sor Juana Inés de la Cruz (1648-1695), considerada a primeira escritora de língua espanhola na América. Através da figura desta interessante e forte mulher, Paz delineia uma fase da história do México, então sociedade católica da Nova Espanha, na segunda metade do século XVII.

O vice-reinado católico da Nova Espanha, constituído no século XVI, avançava do sul dos Estados Unidos até a Mesoamérica, excluindo-se apenas a capitania geral da Guatemala, e, ao lado do vice-reinado estabelecido no Peru, atuou como uma das fontes primordiais de transferência de riquezas para a metrópole espanhola durante quase trezentos anos. É no seio deste contexto que Paz vê a grandeza de Sor Juana, uma das mais extraordinárias personagens da cultura da América, vanguardista e corajosa: uma freira poeta em um mundo encoberto pelo barroco espanhol e pelo sacrifício dos povos indígenas, por dogmas sobrepostos a tradições; sincrético e injusto.

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Narrativas da revolução

17 novembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone
El Lissitzky, "Tatlin trabalhando"

El Lissitzky, “Tatlin trabalhando”

Inveja, do escritor russo Iuri Oliécha (1899-1960), novela aclamada como um acontecimento literário radicalmente novo no ano de sua publicação, 1927, acaba de ser publicada no Brasil pela editora 34, com tradução de Boris Schnaiderman.

A novela recebeu novas e complexas leituras ao longo do tempo; trata-se de uma sátira mordaz e crítica implacável quanto aos ideais socialistas, porém marcadamente poética.

A trama vertiginosa beira o nonsense. É complexa a ambiguidade psicológica dos personagens, a exaltação de sentimentos contraditórios, que vão da arrogância à auto-humilhação, do amor à inveja desvairada. Satiricamente irresolutas na obra, estas contradições são articuladas por uma imaginação desenfreada e um domínio completo do tempo e do espaço narrativos: o resultado, é uma obra de metáforas audaciosas, desenvoltura soberba e de grandeza ímpar.

Ainda hoje, a novela é desconcertante sob muitos aspectos. Uma tragicomédia anárquica, cujo ritmo e intensidade verbal foram recriados com brilho pela tradução de Boris Schnaiderman.

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Rã-txa hu-ni-ku-ĩ…

16 novembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Consegui finalmente apanhar o tipo sintático da língua, um verdadeiro ovo de Colombo, e agora aparece-me em toda a sua unidade através de todas as particularidades. Aos vaivéns da rede, parece-me tudo simples e harmônico” – Capistrano de Abreu, carta a Pandiá Calogéras, de 28 de setembro de 1910.

Cena do filme "A história dos Caxinauás por eles mesmos"

Fotografia do livro “A história dos Caxinauás por eles mesmos” [“Huni kuin hiwepaunibuki”] , organizado por Eliane Camargo e Diego Villar [Edições Sesc, 2014]

Rã-txa hu-ni-ku-ĩ… A língua dos Caxinauás do Rio Ibuaçu, afluente do Muru, estudo de fôlego do historiador, etnógrafo e lingüista cearense João Capistrano de Abreu (1853-1927), foi publicado originalmente em 1914 e, no ano passado, ganhou uma reedição pelas editoras da Unicamp e Unemat, organizada pela linguista Eliane Camargo, pesquisadora associada do Centro de Ensino e Pesquisa em Etnologia Ameríndia, Erea, do Centro Nacional da Pesquisa Nacional da França. A obra contém quase 6 mil frases em Rã-txa hu-ni ku-ĩ [da família linguística Pano], numeradas e acompanhadas de tradução literal em português. Apresentam narrativas mitológicas e experiências cotidianas, de modo que perpassam diversos aspectos da cultura Caxinauá [ou Huni Kuĩ], como a preparação de alimentos, interpretação de sonhos, instruções sobre ofícios e condutas na resolução de conflitos e delitos, aspectos da vida sexual e ritos de festa, caça, enterro e luto. A obra versa sobre “a língua dos homens verdadeiros”, que é a tradução do título e a denominação dada pelos falantes nativos à língua.

Na presente edição, o trabalho de Capistrano de Abreu encontra-se revisado e corrigido, de acordo com os parâmetros da linguística e da escrita caxinauá contemporâneas. O volume conta com preciosos comentários e textos de apresentação.

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Andaimes

9 novembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“El olvido está lleno de memória” – Mario Benedetti.

Croqui de Lina Bob Bardi

Croqui de Lina Bob Bardi

O romance Andaimes, do grande escritor uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), acaba de ser lançado no Brasil pela editora Mundaréu, com tradução de Mario Damato.

Com uma prosa em tom bastante pessoal, o romance trata do retorno do protagonista, Javier, ao Uruguai, seu país natal, depois de anos de exílio político na Espanha. Os andaimes, que dão título à obra, metaforizam as construções graduais de história e memória que Javier articula neste retorno, ao longo de conversas, de desencontros, de cartas, notícias e reflexões, através dos quais paulatinamente percebe as mudanças transcorridas na situação econômica e a política uruguaia, bem como as mudanças passadas por amigos e companheiros de luta. Os andaimes levam o romance às alturas de perguntas reticentes, sobretudo porque feitas por um “desexilado”: o que resta de um país, de um sonho, de tantos afetos?

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Guia de Leitura

Precariado

31 outubro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Precariado” é um termo criado nos anos 1980, pela justaposição do substantivo “proletariado” ao adjetivo “precário”, para designar uma classe social emergente, composta por um número significativamente crescente de pessoas que levam uma vida de trabalho insegura, dependentes de empregos efêmeros, instáveis, flexíveis.

O precariado, assim, indica o proletariado precarizado. Trata-se do setor submetido à espoliação dos direitos sociais: previdenciários, benefícios trabalhistas, representação sindical. De acordo com Guy Standing, economista inglês responsável pela maior difusão do conceito, conforme disse em entrevista concedida à revista Carta Capital, em 2015: “A falta de segurança no trabalho sempre existiu. Isso não é o que define o precariado. Os integrantes desse grupo estão sujeitos a pressões que os habituaram à instabilidade em seus empregos e suas vidas. Mas, de forma ainda mais significativa, os trabalhadores do precariado não possuem qualquer identidade ocupacional ou uma narrativa de desenvolvimento profissional para suas vidas. E, ao contrário do antigo proletariado, ou dos assalariados que estão acima no ranking socioeconômico, o precariado está sujeito à exploração e diversas formas de opressão por estarem fora do mercado de trabalho formalmente remunerado. Ainda assim, o que distingue o precariado é a sua trajetória de perda de direitos civis, culturais, políticos, sociais e econômicos. Eles não possuem os direitos integrais dos cidadãos que os cercam. Estão reduzidos à condição de suplicantes, próximos da mendicância, pois são dependentes das decisões de burocratas, instituições de caridade e outros que detém poder econômico”.

A distinção categorial de precariado é sobretudo relevante no plano heurístico: capaz de expor as novas contradições da ordem burguesa hipertardia, circunscrita à própria dinâmica do modo de produção capitalista na etapa de crise estrutural do capital.

 

Em tempos de nítida e crescente precarização de direitos trabalhistas, crise econômica e silêncio nas ruas, no Brasil, a nova legislação e a continuidade da terceirização e da subcontratação pelas empresas devem acelerar o processo de precarização do trabalho, piorar a desigualdade dentro do mercado de trabalho e intensificar a insegurança social e econômica.

 

Tom Slee, "Uberização. A nova onda do trabalho precarizado"

Tom Slee, “Uberização. A nova onda do trabalho precarizado”

“A Economia do Compartilhamento é um movimento: um movimento pela desregulação”, analisa Tom Slee, autor de Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, recém-lançado pela Editora Elefante, com tradução de João Peres e prefácio de Ricardo Abramovay, professor de Economia da USP. Segundo Slee: “Grandes instituições financeiras e fundos influentes de capital de risco estão vislumbrando uma oportunidade para desafiar as regras formuladas pelos governos municipais democráticos ao redor do mundo. E para remodelar as cidades de acordo com seus interesses. Não se trata de construir uma alternativa à economia de mercado dirigida por corporações. Trata-se de expandir o livre mercado para novas áreas de nossas vidas”.

O autor, britânico que vive no Canadá, com pós-doutorados em Oxford e Waterloo, trabalha na indústria de software e diz que o impulso para compor o livro deu-se quando percebeu a apropriação de bandeiras de igualdade social pelos criadores da Economia do Compartilhamento – a saber, grupo empresarial do Vale do Silício, cuja fundação econômica baseia-se na especulação do mercado financeiro e que, sob o instigante slogan “o que é meu é seu”, patrocinaram o desenvolvimento de aplicativos e programas, graças aos quais todos poderíamos desfrutar o privilégio de dividir em lugar de possuir. Os aplicativos, segundo o discurso da Economia do Compartilhamento, “nos abririam” a possibilidade de estar em contato uns com os outros, com a segurança da mediação garantida por uma tecnologia infalível, literalmente, na palma da mão.

Slee desmonta o suposto discurso altruísta destes modelos de negócios – dentre os quais, atualmente, os mais notórios são Uber e Airbnb. Para o autor, nós compartilhamos nossas forças de trabalho, nossos dados, nosso tempo, nosso dinheiro e, em troca, recebemos até agora muito pouco, quase nada, ao passo que CEOs amealham bilhões de dólares, armam exércitos de lobistas e influenciam governos mundo afora: “O que havia começado como um apelo ao comunitário, a conexões interpessoais, a sustentabilidade, a compartilhamento, tornou-se o playground de bilionários, de Wall Street e de capitalistas de risco, expandindo seus valores de livre mercado cada vez mais fundo em nossas vidas”.

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Com o mar por meio

26 outubro, 2017 | Por Isabela Gaglianone
Jorge Amado e José Saramago, na Bahia

Jorge Amado e José Saramago, na Bahia [Acervo Casa de Jorge Amado]

Com o mar por meio. Uma amizade em cartas, correspondência entre Jorge Amado e José Saramago, é um testemunho sincero da cumplicidade e da admiração que permeiam uma amizade. Os escritores conheceram-se em 1990, em Roma, quando foram jurados do prêmio União Latina; Jorge Amado, então, tinha 78 anos e, Saramago, 68. O vínculo foi tardio, mas no entanto forte e carinhoso, estendido às companheiras de ambos, Zélia e Pilar. O volume com a preciosa correspondência, trocada entre os anos de 1992 e 1998, foi lançado este ano pela Companhia das Letras, com projeto gráfico especial, conta com facsímiles das cartas, bilhetes, cartões e faxes, além de fotos do acervo pessoal dos autores.

José e Jorge travaram uma rica e singular troca, tanto pessoal, quanto em termos de discussão de ideias, sobretudo sobre a cena literária na conjuntura contemporânea. Com humor, discutiam sobre prêmios e associações de escritores, com especulações divertidas sobre quem seria, por exemplo, o próximo a ser contemplado com o Prêmio o Camões ou o Nobel – esta “invenção diabólica”, como escreveu em carta José Saramago. Jorge Amado, por exemplo, brinca,  em uma carta de 1994: “Para dizer toda a verdade, devo convir que os 950 mil dólares do Nobel cairiam muito bem no bolso de um romancista português ou brasileiro, pobre de marré, marré”. Ao que o amigo, que foi laureado com o prêmio anos depois, em 1998, responde: “Não podemos viver como se a salvação de nossas duas pátrias dependesse de termos ou não prêmio Nobel. Mas como cairia bem esse dinheiro!…”.

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Didi-Huberman

25 outubro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“A casca não é menos verdadeira que o tronco. É inclusive pela casca que a árvore, se me atrevo a dizer, se exprime”.

Fotografia de Gilles Caron

O filósofo francês Georges Didi-Huberman nasceu em Saint-Étienne, na França, em 1953. É autor de mais de trinta livros, professor da École de Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris, e um dos mais importantes pensadores sobre a arte hoje. Didi-Huberman esteve na semana passada no Brasil para a abertura da exposição “Levantes”, da qual é curador e que fica em cartaz em São Paulo, no Sesc Pinheiros, até 28 de janeiro.

Por ocasião da presença do filósofo, dois de seus livros foram aqui lançados: o belo ensaio Cascas, publicado pela Editora 34 com tradução de André Telles, e Levantes, reflexão de Didi-Huberman à guisa de catálogo da exposição, reunido a ensaios de outros filósofos renomados, como Judith Butler, Antonio Negri e Jacques Rancière, volume organizado pelo próprio Didi-Huberman e publicado pelas Edições Sesc.  Continue lendo

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Comum

19 outubro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“O porvir parece estar em suspenso. Vivemos um momento estranho, desesperante e inquietante, em que nada parece possível. O porquê não tem nenhum mistério; não se deve a nenhuma eternidade do capitalismo, mas sim ao fato de que ele não enfrentou ainda obstáculos suficientes. O capitalismo continua exibindo sua lógica implacável, ainda que a cada dia demonstre sua temível incapacidade para trazer solução para a crise e para os desastres que engendra” – Pierre Dardot e Christian Laval.

Fotografia que mostra uma das frases mais utilizadas durante o Movimiento 15M, também chamado Movimiento de los Indignados, na Espanha. [Divulgação]

Fotografia que mostra uma das frases mais utilizadas durante o Movimiento 15M, também chamado Movimiento de los Indignados, na Espanha. [Divulgação]

Comum. Ensaios sobre a revolução no século XXI, de Pierre Dardot e Christian Laval, foi há pouco publicado no Brasil pela Boitempo, com tradução de Mariana Echalar. Para o autores, o comum é um princípio que não só articula as lutas práticas contra o capitalismo e os estudos sobre o governo coletivo de recursos, mas direciona novas formas democráticas. Uma vez que somente a prática delimita o que é o “comum”, com a consequente produção de regras de responsabilização a seu respeito, o comum demanda uma revolução.

Dardot e Laval já haviam publicado  A nova razão do mundo no Brasil, também pela Boitempo, no ano passado, livro cujas reflexões ganham sequência em Comum, enquanto renovação da crítica social e proposta de alternativa política ao neoliberalismo.

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Carl Einstein e a Arte da África

16 outubro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“[…] na forma, a visão ganha uma força que até esse momento tinha sido atribuída apenas ao conceito” – Carl Einstein, trecho de seu romance Bébuquin ou les Dilettantes du Miracle, de 1912.

Carl Einstein, “Negerplastik”

Carl Einstein e a Arte da África, organizado por Elena O’Neill e Roberto Conduru e publicado pela EdUERJ em 2015, reúne os textos pioneiros de Carl Einstein sobre esculturas e objetos africanos e os contrapõem a ensaios de estudiosos e comentadores que buscam contextualizar sua incontestável relevância e sua múltiplas decorrências teóricas. Trata-se de uma publicação de referência para os estudos sobre arte e para reflexões acerca do etnocentrismo museológico que canonicamente rege a crítica de arte.

Poeta de vanguarda, historiador e teórico da arte, escritor, mediador cultural entre França e Alemanha, Carl Einstein (1885-1940) foi o primeiro teórico ocidental a estudar formalmente a arte africana como uma legítima expressão artística.

Seu livro Negerplastik, lançado na França em 1915 [do qual há uma boa tradução para o português, realizada por Fernando Scheibe e Inês de Araújo e publicada pela editora da UFSC, em 2011], compara a estatuária africana ao cubismo europeu na problematização do espaço – destacando a “sinceridade espacial da escultura negra”. Intelectual ativo, Einstein frequentou os ateliers dos pintores cubistas e manteve uma amizade suradoura com Daniel-Henry Kahnweiler; foi cofundador da revista Documents, em 1929, junto com Georges Bataille, Michel Leiris, Georges Wildenstein e Georges-Henri Rivière. Continue lendo

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