Crítica Literária

O tempo fabular dos diálogos de Pavese

12 dezembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Cesare Pavese, Diálogos com Leucó. (Cosac Naify, 2011, tradução de Nilson Moulin)

 

“O homem mortal, Leucó, só tem isso de imortal. A lembrança que carrega e a lembrança que deixa. Nomes e palavras são isso. Diante da lembrança sorriem também eles, console-se”. 

 

 

Diálogos com Leucó é um livro de ressoares, de ressonâncias. Um conjunto reflexivo, em tom enigmático que, com erudição e um humor cáustico, brinca com as histórias mitológicas, humanizando-as, desmistificando-as, dando-lhes vida através da espontaneidade que carrega naturalmente consigo o que se diz em forma de conversa.

Lucidez e uma frustração resignada penetrante, juntas, permeiam os comentários, que tecem uma visão peculiar da natureza humana, pois, feitos sobretudo por seres mitológicos, delineiam-lhe um panorama, perspectivado psicológica e antropologicamente, pessimista e irônico: “O que são os mortais senão sombras precoces?”

Travados sobretudo por ninfas, sátiros, deuses, heróis, os diálogos tem um tempo próprio, tempo poético da humanização, por um lado, da condensação vocabular de pensamentos e significados, por outro: um ponto de encontro que embasa uma profunda reflexão sobre a morte e a poesia; sobre o homem, a vida, o destino, o amor. Desenvolvidos neste entroncamento, os Diálogos com Leucó são o diálogo do tempo consigo mesmo. Apresentam um tempo mitológico, ele próprio fabular, metáfora em forma de imortalidade.

Imortal não é quem não teme a morte, como supunha Ulisses; é quem não espera viver, diz-lhe Calipso: o tempo mitológico é originário ao passo que é, também, eterno. Simultaneamente, os diálogos, pela forma construtiva que lhes é particular, guardam em si, aém deste tempo mitológico, também uma temporalidade sensível e humana: o tempo humano é contínuo e finito. As conversas do livro de Pavese abarcam esse paradoxo, a duplicidade concomitante do tempo imortal e do tempo finito. Pois compreendem um modo peculiar de pensamento,o pensar metafórico, que desdobra os mitos nas palavras e as palavras no mito. E, porque abrangem ambas temporalidades, são a concretização da representação de uma origem que nasce para acabar; por isso, encerram em si silêncios.

 

PEQUENAS FÁBULAS

A dialética entre morte e vida, entre o contingente e o destino, simboliza-se nas figuras míticas, sobretudo pelo que representa a figura de Leucótea, a ninfa marinha que salvou Ulisses do afogamento. Os “diálogos com Leucó”, são de certa maneira diálogos com o mar, com a possibilidade de viver ou morrer. O intelectualismo simbolista de Pavese é, pois, niilista. A descrença que permeia os mitos e os ultrapassa e permanece, ganha uma dimensão trágica entre seus fragmentos épicos.

Cada diálogo de Pavese é uma pequena fábula. Profundos e poéticos, eles entrelaçam homens e deuses, criando contrapontos de mistificações e desmistificações. Compõem uma visão de mundo em que o tempo não poupa nem mesmo os deuses e as musas, pois, pela conversação, o tempo é humanizado, desengana a imortalidade alheia à passagem temporal, conferindo-lhe um pesar, atualiza a eternidade em fragmentos cronológicos. O diálogo, compreendido de modo geral, é necessariamente construtivo, seu tempo é narrativo e mundano; expressa-se como paulatina construção de ideias, de  identidades e do próprio tempo, uma tautologia que, nos diálogos mitológicos do livro, é posta em relação com a morte, com a existência, com o destino.

“Calipso

Quer saber demais, caro. Digamos que sou imortal. Mas se você não renuncia às suas lembranças e sonhos, se não deixa de lado a obsessão e não aceita o horizonte, não se livrará daquele destino que conhece.

Ulisses

Trata-se sempre de aceitar um horizonte. E de obter o quê?

Calipso

Apoiar a cabeça e silenciar, Ulisses. Alguma vez se perguntou por que também nós buscamos o sono? Alguma vez se perguntou para onde vão os velhos deuses que o mundo ignora? Por que mergulham no tempo, como as pedras na terra, eles que também são eternos? E quem sou eu, quem é Calipso?”

Também os deuses procuram o sono, mesmo em sua eternidade; procuram um momento alheio ao tempo, momento em que sofrimento e esquecimento amalgamam-se. Os imortais, humanizados e desmistificados, desencantam também o tempo da eternidade. Construindo, através da irregularidade natural do diálogo, relações temporais entre o eterno e o efêmero, forma-se um diálogo paralelo dos concomitantes tempos diferentes, à uma maneira musical polifônica, como se composta pela simultaneidade entrelaçada, por exemplo, de um ritmo ternário e um binário – o tempo das palavras, finito, e o tempo do mundo, imortal.

A ramificação semântica do iminente é, pois, significativa ao longo dos diálogos. Assim como pontuado na conversa iniciada por Hércules quando vai ao resgate de Prometeu que, entretanto, profundamente resignado, “quando chega o momento de escapar, não se decide a superar aquele instante, a deixar para trás a vida sofrida”. Como a um homem, ele diz, lhe pesa o instante. Hércules insiste e o próprio tempo em que se desenvolve o diálogo, pessimista e relutante por parte de Prometeu, ansioso por parte do herói, expressa-se em dimensão tão sensível, que é quase palpável. O desenrolar do diálogo dá tempo ao tempo de ser, ao próprio tempo discursivo da construção de contrapontos de ideias, tão intimamente narrativo quanto o pensamento. Uma temporalidade infinito ou infinitamente subdivisível, que cala, pontuado por pequenos rodamoinhos de silêncios a cada reflexão, a cada resposta. Prometeu é a figura que Goethe tomou como icônica do homem enquanto formador de si mesmo; foi quem roubou de Zeus o fogo para dar ao homem, motivo pelo qual teve como castigo a reclusão no penhasco de onde o salvou Hércules. É irônico, portanto, que seja justamente essa figura, cujo papel é fundamental para a humanidade, a que revela uma verdade ambígua:

“Hércules, existe uma sabedoria mais antiga. O mundo é velho, mais do que este rochedo. E também eles o sabem. Cada coisa tem um destino. Mas os deuses são jovens, quase tão jovens quanto você”.

Sua compreensão temporal, do mundo, do incontingente, ainda que fatalista, sugere uma ordenação, resignada e niilista – o espaço da cultura mistura-se ao espaço da natureza. Prometeu diz, mais adiante: “Não retornam os seixos. Existem. O que foi será”.

Contrapondo o tempo dos homens ao tempo dos deuses no tempo do mundo, o diálogo é, portanto, em si, metáfora metalingüística. “Somos um nome, nada mais”, diz Prometeu. Talvez sejamos um nome em um discurso, em uma relação, individualizados pela identidade que o nome carrega, questão menos filológica do que moral. Um nome que tem e si sua existência, enquanto ser no mundo. É uma significação ambígua que une a temporalidade dos mitos à das palavras. O tempo é poetificado, estendido a abstrações de suas próprias determinações, de suas sensações elementares, bem como dos signos que sua representação gera. O diálogo, por sua própria forma, é testemunha do desenrolar de sua estrutura intelectual intuitiva; simultaneamente, nele, o próprio tempo é sujeito e objeto dos destinos.

 

DESENCANTAMENTO PUNGENTE

Resgatando a antiguidade mitológica grega em forma de conversas, o livro de Pavese põe-se em relação aos diálogos platônicos. Estes, são exercícios empíricos; a ideia, neles, é presença bruta a ser lapidada. Imediato simulacro no qual intervém o mito como medida ontológica – conforme analisa, em um contexto deslocado, Deleuze, trata-se do que pode ser definido como “mito circular”, que é “a narrativa-repetição de uma fundação”, em que a estrutura problemática “faz parte dos objetos e permite apreendê-los como signos, assim como a instância questionante ou problematizante faz parte do conhecimento e permite apreender-lhe a positividade, a especificidade no ato de aprender”[1]. A essência do problema é o Ser, cuja ontologia desdobra-se com o rebatimento de questões instaurado pelo diálogo. Os Diálogos de Leucó partilham da uma poética análoga à dos diálogos platônicos; são metáforas vivas: de Pavese, relativas ao pathos, de Platão, ao logos; ambas resguardam a condução do pensamento.

Com Leucó, com Mnemósine, Dionísio, Quíron, Eros – cito apenas exemplos –, abre-se uma fenda em que retumbam as relações do tempo com a morte, com a existência, com o destino. São questões que permeiam o estabelecimento de vínculos, pessoais ou ideias, entre os seres humanos e os deuses; entre a mortalidade e a imortalidade. Ecos platônicos novamente, no livro de Pavese os homens são descritos, já o mencionamos, como meras sombras: não somente vivem num mundo de sombras, como propriamente o são, em sua essência; pois o término iminente de suas vidas projeta tal luz de medo, fascínio e desafio, que obscurece a própria existência, subordinando a vida ao momento da morte. Como sombras, vagueiam, à espera do cumprimento de seus destinos. Como se a própria vida fosse uma ilusão, cuja realidade só se concretizasse em relação à morte, quer alcançando-a, quer desacatando-a.

Pavese escreveu este livro antes de suicidar-se. Talvez aí esteja a chave do pessimismo de suas falas; oscilação entre aceitação do destino e desengano sofrido com a vida. Susan Sontag, refletindo sobre os diários do autor e sobre o sofrimento pelos quais ele mostra ter passado, tece alguns interessantes apontamentos sobre o artista como sofredor exemplar – sintoma, segundo ela, de uma sociedade cristã:

“Para a consciência moderna, o artista (que substitui o santo) é o sofredor exemplar. E entre os artistas, o escritor, o homem das palavras, é a pessoa que buscamos, aquela capaz de melhor expressar seu sofrimento. O escritor é o sofredor exemplar porque encontrou o grau mais profundo de sofrimento e também um meio profissional para sublimar esse sofrimento (no sentido literal e não freudiano). Enquanto homem, ele sofre; enquanto escritor, transforma seu sofrimento em arte. O escritor é um homem que descobre o emprego do sofrimento na economia da arte – assim como os santos descobriram a utilidade e a necessidade do sofrimento na economia da salvação”[2].

 

A diferença dos imortais em relação aos mortais, dissera-o Calipso, não é não sofrerem, mas sorrir ao lamentável, um sorriso próprio da aceitação do destino, que expressa a capacidade de acolher a própria sorte e a si mesmo. Isso torna a ser dito, por Birtomártis a Safo: as duas ninfas conversam, haviam tentado morrer, mas, ao invés, tornaram-se ondas do mar, “tudo morre no mar e revive. Agora você sabe”. Imortais, elas podem apenas mudar, eis seu destino e seu desejo: “Nossa vida é folha e tronco, bolha d’água, espuma de onda. Brincamos de aflorar as coisas, não fugimos. Mudamos”. Sua imortalidade entrelaça-se a essa compreensão de necessário renascimento, da aceitação de que, se morrem sob uma forma, é para renascer em outra. Pois também os imortais tem a busca da morte como pulsação patética. Seu destino é justamente não encontrá-la, antes, tornar-se espuma do mar, tornar-se ritmo da realidade profunda da existência. O desencantamento pungente já era anunciado pelo parágrafo introdutório a este diálogo: “[…] Mar que viu muitos amores e grandes aventuras. […] É de esperar que esteja todo impregnado de esperma e lágrimas”. Uma ironia cáustica e amarga.

O mar, como símbolo, é uma unidade expressiva da existência, simultaneamente da morte e da eternidade. Seus ritmos ligam-se profundamente à sensibilidade humana do passar do tempo. Por outro lado, representa o desconhecido e abissal do que é mais íntimo, mas, ainda assim, universal.

 

NÓS SEMÂNTICOS

Pavese foi criticado pela publicação desses Diálogos; o livro foi considerado pela crítica um retrocesso alienado do autor conhecido pelo trabalho engajado. Contudo, o conjunto resume muitas das preocupações do escritor, muitos de seus interesses filosóficos. Leitor de Vico, parece responder-lhe – também outro diálogo paralelo, freático, conceitual e ideológico. Para Vico, os primeiros povos da gentilidade, por uma comprovada necessidade natural, foram poetas, e falaram por figuras poéticas. Tais figuras corresponderam a determinados gêneros fantásticos ou imagens de deuses e heróis. Esses caracteres, divinos ou heróicos, percebemo-los como verdadeiras fábulas, ou narrações verazes; nelas, descobrem-se as alegorias, cujos sentidos não são análogos nem filosóficos, mas históricos. Para Vico, é impossível imaginar, com grande esforço nos seria apenas dado a perceber, essa natureza poética dos primeiros homens. No entanto, é o que fez Pavese.

Como uma obscura sombra que a linguagem projetasse sobre o pensamento, as imagens míticas proporcionam uma peculiar percepção da realidade. Elas são geradoras de seu próprio mundo significativo. E convertem-se em arquipotências enquanto palavras: determinam a moral da existência humana, as articulações da realidade, inscrita em um campo de forças mítico. Ao mesmo tempo em que converte a realidade em palavras, o pensamento mítico aponta para um mundo além da linguagem, para um mundo do silêncio. Configura, no próprio seio deste aparente paradoxo, uma concepção mental que lhe é característica, o pensar metafórico: um movimento constante de enformação simbólica, tendência do pensamento à compreensão de significados num só ponto, que indica o real acento da significação. Reino das metáforas, a poesia – compreendida de maneira geral, inclusive enquanto forma prosaica –, reflete a conexão entre a palavra e a imagem mítica, move-se livremente entre ambas, pois as apreende como seus órgãos. A poética dos Diálogos de Leucó é tecida por um movimento de entrelaçamento entre o momentâneo e o duradouro, cuja imediata significação é resguardada pela relação da parte com o todo. Como o concebe Cassirer,

“A parte não representa meramente o todo, nem o indivíduo ou a espécie representam o gênero, mas são ambas as coisas; não só implicam este duplo aspecto para a reflexão mediata, como compreendem a força imediata do todo, sua significação e sua eficácia. Aqui vem forçosamente à lembrança aquele princípio que se pode designar como o verdadeiro princípio básico, quer da ‘metáfora’ linguística quer da mítica, e que é expresso pelo axioma pars pro toto”[3].

O pensar metafórico resguarda a articulação de uma realidade particular, pontuada de silêncios.

A poesia que permeia os diálogos e os mitos que eles encerram identifica-se com a prosa da arte: por sua arquitetônica, estruturada de maneira a desenvolver-se sobre nós semânticos. Entre eles, o próprio tempo de ser é questão, irônica e premente, que sobressai como pequena metáfora desencadeadora. Simboliza-o, entre outros, Belerofonte, que era “justo e piedoso. Matava Quimeras. E agora que está velho e cansado os deuses o abandonam”; fora encontrado “triste como um deus derruído e grisalho – e atravessa campos e pântanos falando com aqueles mortos”. Representação de remorso e angústia, reais e palpáveis como a velhice e, como ela, pessimistas. “Acontece que outrora não falava com os mortos. Naquele tempo eram fábulas. Hoje, ao contrário, os destinos que toca se tornam o seu próprio”. Metáforas vivas, discursivas e, à mercê do tempo, envelhecidas.

Os diálogos de Pavese são filosóficos em sua essência poética. Desnovelam a essência da identidade discursiva através da desmistificação que exercem sobre as personagens fabulosas a quem dão voz. Paradoxalmente, formam um tecido de fábulas e alegorias: desmistificam, mas são mitos. Encerram em si o pensar metafórico, pois são linguagem e mito amalgamados – figuras poéticas.

“O que foi tornará a ser. Pensava naquele gesto, naquele vazio que eu havia atravessado e que carregava nos ossos, no miolo, no sangue. Valia a pena reviver de novo?”. Orfeu, o poeta querido pelas musas pergunta-se, desencantado, desmistificando seu amor por Eurídice, a quem fora resgatar no reino dos mortos. Num gesto de profundo niilismo, porém, ao encontrá-la, dissera-lhe, “Termine de uma vez”, virara as costas e partira, ao passo que sua amada desaparecia, “como se apaga uma vela”.

“Orfeu

Não se ama quem está morto.

Baca

Todavia você chorou por montes e colinas – procurou-a e chamou por ela –, desceu até o Hades. O que era isso?

Orfeu

Você diz que é como um homem. Saiba então que um homem não sabe o que fazer com a morte. A Eurídice que chorei era uma estação da vida. Lá em cima, eu procurava coisa bem diferente do seu amor. Procurava um passado que Eurídice não conhece. Compreendi isso entre os mortos enquanto entoava meu canto. Vi as sombras se enrijecerem e os olhares vazios, os lamentos cessando. Perséfone escondendo o rosto, o próprio tenebroso-impassível, Hades, inclinando-se como um mortal e ouvindo. Entendi que os mortos não são mais nada”.

A tragicidade do sofrimento perpassa os diálogos e repousa, em grande medida, em sua incontingência – fruto do destino, para os mortais –, em sua perpetuação – cujo consolo é apenas aceitação, para os imortais. Por trás do sofrimento, está a busca de si, a formação – que a forma dos diálogos metaforiza – da visão de mundo como reflexo dos pesares interiores, da compreensão de si como resposta aos acontecimentos exteriores. Orfeu, após ter descido ao Hades, diz: “A estação passou. Eu procurava, chorando, não mais ela, mas a mim mesmo. Um destino, se quiser. Ouvia-me”.

Trata-se da predicação de si como contextualização teleológica da vida e também da morte. Na conversa que travam Crato e Bia – o poder e a força – de quem, diz Hesíodo, a “casa não fica longe de Zeus”, como, Pavese contextualiza, “prêmio pela ajuda que lhe deram na luta contra os titãs”, diz Crato: “Este filho do monte que comanda com o cenho não é mais como os velhos senhores – a Noite, a Terra, o velho Céu ou o Caos. […] Tempos atrás, as coisas aconteciam. Cada coisa chegava ao fim e era um todo que vivia. Agora, ao contrário, há uma lei e uma mente”. Entre os homens e os deuses retumba o mistério do tempo e o da palavra, que viola seus silêncios. Os titãs foram sobrepujados pelos deuses; os deuses o serão pelos homens, quando deixarem de temê-los. Prossegue Crato a dizer a Bia: “Mas você sabe o que são os homens? Coisas miseráveis que deverão morrer, mais miseráveis que os vermes ou que as folhas do ano anterior, que morreram ignorando-os. Mas eles sabem disso”. O conhecimento do destino é o próprio mistério que povoa o mundo de sombras no qual os homens precisam sobreviver à própria incontigência de sua finitude.

Nesse sentido, cabe aqui resgatar a leitura da análise de Pedro Süssekind, que lê os Diálogos com Leucó à luz de uma questão central da filosofia do trágico, conforme elaborada por Hölderlin: o afastamento dos deuses.

“Referindo-se à tragédia de Édipo, Hölderlin fala de um “tempo inoperante”, em meio à peste e à confusão de sentido, fala de um “limite extremo do sofrimento humano”, que leva ao esquecimento dos deuses, fala também de um afastamento dos deuses em relação aos homens, de uma “infidelidade divina”. […] A experiência do divino descrita por Hölderlin nada mais é do que a experiência da poesia, de uma embriaguez da palavra transbordante, de um olhar para a natureza que enxerga, nela, o mistério, o sagrado, a força criativa, os signos e os significados dignos de serem cantados. […] A pergunta que fica então é: o que restará após a morte dos deuses? Nessa pergunta, que ressoa em vários trechos do livro de Pavese, talvez se possa identificar a perspectiva e a intenção de sua retomada do tema “romântico” e da filosofia do trágico. Pois se Hölderlin questionava a tragédia moderna em sua relação problemática com a antiga (e com isso pensava tanto o trágico quanto o moderno), Pavese remete o desaparecimento dos deuses a uma reflexão sobre futuro da humanidade. Escrevendo durante a Segunda Guerra, ele põe na boca de seus personagens previsões relativas ao domínio técnico de forças naturais e ao uso destrutivo ou construtivo dessas forças por parte dos homens”[4].

 

O ateísmo ressoa surdo, como alegoria irônica e discreta da descrença. Os deuses reduzem-se a mitos, suas palavras humanizam-nos em meio ao seu silêncio frente à devastação humana do mundo. Os homens, entre o destino e a esperança, “tratam o destino e o futuro como se fosse um passado”, diz Hamandríada ao Sátiro, ao que este responde, “É isto que significa esperança. Dar um nome de lembrança ao destino”, e prossegue: “Viverão no futuro conforme aquilo que o terror desta noite e de amanhã fará com suas fantasias. Serão bestas selvagens e rochas e plantas. Serão deuses. Ousarão matar os deuses para vê-los renascer”.

Ao comentar a poética de Pavese, Ítalo Calvino afirma que, nela, trata-se de “chegar, por meio de uma árdua via de exclusões e reduções, até imagens que sejam nódulos de experiência insubstituíveis, comunicações absolutas em todos os níveis”. Segundo ele, Pavese “deseja ser lido como se leem os grandes trágicos, os quais, sob qualquer aspecto, em cada movimento de seus versos condensam uma plenitude de motivações interiores e de razões universais extremamente compacta e peremptória”.

Muito do que os diálogos sugerem não é dito. Envoltos em penumbras, eles retumbam silêncios profundamente significativos. Articulam o passado à passagem; o conhecimento histórico à ilusão literária. Entre deuses e homens: “Você já sabe. Aqueles encontros com eles”.

 

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[1] Deleuze, Diferença e repetição, pp. 101, 103.

[2] Sontag, “O artista como sofredor exemplar”, in: Contra a interpretação.

[3] Cassirer, Linguagem e mito, p. 109.

[4] Süssekind, “Poesia nos tempos de indigência”.

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DIÁLOGOS COM LEUCÓ

Autor: Cesare Pavese
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 48,30 (240 págs.)

 

 

 

 

 

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