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O encontro entre eternidade e história

16 dezembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Ticiano

Acaba de ser lançado no Brasil o interessante ensaio Pilatos e Jesus, de Giorgio Agamben. Trata-se de uma profunda reflexão sobre o enigma do julgamento de Jesus Cristo à luz da análise da figura de Pilatos, que, segundo Agamben, é a responsável por assegurar o caráter histórico da paixão de Cristo, por ser talvez a única personagem genuinamente humana, de carne e osso, dos Evangelhos. Um homem de quem conhece-se hesitações, o medo, o ressentimento, a hipocrisia, o sarcasmo. Agamben extrai do breve encontro entre Pilatos e Jesus, para além do drama da paixão e da redenção, o encontro único entre o “mundo dos fatos” e o “mundo da verdade”, o embate entre a eternidade e a história.

Segundo Douglas F. Barros, no texto de orelha do livro, “Agamben procura mostrar em que sentido o processo de julgamento daquele que “veio ao mundo para nos salvar” pode ser visto como uma “alegoria do nosso tempo”. Barros explica: “Em grego, o ato de julgar denomina-se krisis. O termo comporta tanto o significado jurídico quanto o médico (“julgar” se e em que momento o paciente morrerá) e o teológico (o Juízo final). O processo da entrega de Jesus por Pilatos constitui uma krisis porque expõe o confronto de dois mundos inconciliáveis: o reino temporal vai julgar o Reino eterno. Perguntado sobre os crimes que teria cometido, se era o Rei dos judeus, Jesus responde: “O meu reino não é deste mundo”. A krisis também se expressa no fato de o processo contra Jesus não constituir um julgamento em senso estrito. Pilatos – personagem histórico – desenvolve também uma função teológica ao desencadear o processo jurídico pelo qual sabemos que Jesus pertence a outro mundo. No entanto, o ato de julgamento não se consuma, o processo que os envolve não chega a uma conclusão. O processo sem julgamento comporta uma contradição profunda nos termos do direito: “que haja um processo, mas não um julgamento, é, na realidade, a mais severa objeção que se possa levantar contra o direito”.

O que a análise de Agamben põe em questão é a própria história como um processo e o permanente estado de crise que é diagnosticada como principal marca de nosso presente histórico. Desencadeiam-se algumas perguntas: por que o encontro entre o humano e o divino, o histórico e o a-histórico, assume a forma de um processo? Que processo é esse? O que vem a ser, afinal, um processo sem juízo capaz de estabelecer uma pena como a crucificação?

Na conferência de lançamento do livro, Agamben disse: “As razões pelo interesse certamente não faltavam, se Nietzsche pôde escrever que Pilatos “é a única figura dos Evangelhos que merece respeito”. No entanto, não era isso que me levava a reler os textos, a espiar cada gesto seu, a pesar cada palavra sua. Parecia-me, de fato, que no encontro (fugaz: durou cerca de seis horas, desde o início da manhã até a hora sexta) entre Pilatos e Jesus estava em questão um evento enorme e inédito, que naquelas seis horas, para além do drama da paixão e da redenção, sobre o qual tanto se refletiu e não se deixa de refletir, talvez tenha se consumado também outro evento, não menos decisivo, e que, para mim, se tratava de entender precisamente isso. […] Quando Jesus é levado diante de Pilatos, já foi dito, dois mundos estão imediata e irreconciliavelmente de frente, o dos fatos e o da verdade. […] Importava-me entender isso, esse grito e essa recíproca perfuração entre os dois mundos era o quebra-cabeça que eu senti que devia resolver. […] O encontro entre o divino e o humano tem a forma de um processo, de uma krisis (krisis em grego significa o juízo em um processo). Mas justamente aqui as coisas se complicavam de modo inextrincável. […] no término da sexta hora, o juiz não tinha pronunciado um juízo, tinha simplesmente “entregue” Jesus – assim dizem concordemente os evangelistas – aos sinedritas e aos carnífices. Durante toda a duração do processo, Pilatos, aliás, só tinha tergiversado”. O filósofo conclui a contextualização de sua linha de raciocínio mostrando que a pena de Jesus não adveio de um juízo e questionando, portanto, o que é um processo sem juízo: “Pilatos, o obscuro procurador da Judeia, que devia agir como juiz em um processo, se recusa a julgar o acusado; Jesus, cujo reino não é deste mundo, aceita se submeter ao juízo de um juiz, Pilatos, que se recusa a julgá-lo”.  

O lançamento é uma coedição entre a Boitempo e a editora da UFSC. A tradução foi feita por Patricia Peterle e Silvana de Gaspari.

 

 

PILATOS E JESUS

Autor: Giorgio Agamben
Editoras: Boitempo e EdUFSC
Preço: R$ 19,60 (80 págs.)

 

 

 

 

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