Literatura

O tempo, a loucura: entrelaçamentos

10 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

 “Foi um grande desvio que me levou até esse ponto. E o que aconteceu depois é difícil de relatar numa linguagem mais ordenada. Espero que me entendam”.

 

O escritor pernambucano José Luiz Passos é o autor do elogiado romance O sonâmbulo amador, pelo qual venceu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa de 2013. Passos é professor na Universidade da Califórnia, onde fundou o Centro de Estudos Brasileiros. No Brasil, já tinha publicado um primeiro romance, Nosso grão mais fino, além de dois livros de crítica literária: Ruínas de Linhas Puras (publicado em 1998 pela Annablume), que reúne quatro ensaios sobre Macunaíma, e, mais recente, o ensaio Machado de Assis – O romance com pessoas (publicado em 2008 pela Edusp).

O sonâmbulo amador apresenta a história de um funcionário de uma indústria têxtil pernambucana, narrada depois de seu surto psicótico. Interessante desde o título – o inusitado “amador” qualificando um “sonâmbulo” cria uma imagem engenhosa –, o livro foi inspirado em uma visita de Passos a um armeiro húngaro, no Recife. O protagonista, Jurandir, apenas alguns dias antes de se aposentar como chefe de segurança, empreende uma viagem ao Recife para resolver um processo trabalhista. Sua jornada, porém, torna-se um pesadelo: sem motivos prévios ou aparentes, ele incendeia o carro da empresa e perde o controle de suas ações.

Dois meses depois, é internado numa clínica psiquiátrica na cidade alta de Olinda e, a pedido médico, começa a escrever seus sonhos, em textos que entrelaçam-se com eventos passados, opiniões e sua presente rotina de interno. O romance, original e emocionante, assim mistura, num solilóquio muito bem estruturado, os sonhos do protagonista a acontecimentos políticos do final da década de 1960. Sobre a diferença entre solilóquio e monólogo, o escritor Raimundo Carrero, em resenha a O sonâmbulo amador publicada no jornal Rascunho, diz: “[…] no solilóquio, mais literário do que teatral, ou seja, escrito, a voz é mais interior e, por isso mesmo, não precisa de ouvido, daí a não-linearidade. Ambos falam para si mesmos, mas o monólogo pode ser interpretado como discurso em voz alta, enquanto o solilóquio procura um pouco mais os pensamentos interiores. Daí a diferença tão sutil que quase não se pode distinguir. A habilidade técnica do autor — e não do narrador — é que define e distingue. O bom escritor, ou o bom artesão, aparece aí, revela-se por completo. E mostra, verdadeiramente, as razões que o levaram a ser um artista. É neste sentido que Passos apresenta a sua principal qualidade — o domínio da narrativa, ao lado da criação de personagens”.

Segundo o jornalista Rodrigo Casarin, em resenha também publicado no jornal Rascunho, O sonâmbulo amador é uma obra “das mais marcantes da literatura brasileira contemporânea”. Para Cassarin, na obra “Passos apresenta uma linguagem ainda mais redonda do que em Nosso grão mais fino. É o tipo de livro que o leitor continua lendo simplesmente por ser bom, não por querer descobrir algo ou chegar a algum lugar — ainda que descubra, ainda que chegue”.

Em análise ao livro para o jornal Estado de São Paulo, o escritor André de Leones diz: “Cada desdobramento da narrativa funciona como uma unidade aparentemente autônoma a flutuar nesse vazio que é o próprio Jurandir. Não há sentido intrínseco ou extrínseco a elas”. Para Leones, há um espelhamento abstrato: “O rapaz sem rosto espelha o narrador sem rosto, e a compensação que se busca em ambos os casos é de outra ordem. Não é material ou sequer metafísica, mas ética: o que é possível fazer por si e pelo outro? E até que ponto?”.

O sonâmbulo amador é um livro profundamente interessante, que se desenvolve por entre um rico entrelaçamento de diferentes ordens de problemas – a narrativa, o tempo, a loucura, a memória.

 

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Escutei uns passos no corredor e fiquei irritado, me pareceu que, mesmo a folia tendo acabado, a clínica ainda estava em confusão. Quando fiz menção de me levantar, a fim de reclamar do barulho, ouvi um berro terrível. Não Odilon, alguém gritou alto. Pelo amor de Deus, tenha pena dos pacientes. Era isso ou mais ou menos isso que diziam. Estaquei na cama com os olhos na porta, que agora alguém sacudia querendo entrar. Não lembro quanto tempo se passou. Mas o desfecho revela bem a diferença entre os rigores do sonho e os da realidade, que quando misturados resultam obviamente na completa confusão da vida.

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O SONÂMBULO AMADOR

Autor: José Luiz Passos
Editora: Alfaguara
Preço: R$ 31,52 (272 págs.)

 

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