Literatura

Por uma literatura menor

9 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“O meu emprego é intolerável porque contradiz o meu único desejo e a minha única vocação que é a literatura. Como eu nada sou senão literatura, que não posso nem quero ser outra coisa, o meu emprego nunca poderá ser causa de exaltação, mas poderá, pelo contrário, desequilibrar-me completamente. Aliás, não estou muito longe disso”.

Essas palavras, escritas por Kafka ao pai de sua noiva, Felice Bauer, ilustram a leitura de sua obra enquanto retrato da literatura e do pensamento judaicos, ligada ao desenraizamento e à perseguição. Deleuze e Guatarri, entretanto, neste seu estudo interpretativo, deslocam os problemas tradicionais, do trágico e da culpabilidade, para os da alegria e da política: a política que atravessa o gênio e a alegria que o comunica. Segundo os autores, “nunca houve autor mais cósmico e alegre do ponto de vista do desejo; nunca houve autor mais político e social do ponto de vista do enunciado”. Kafka cria um espaço literário, utilizando critérios totalmente novos. 

Na versão guatarro-deleuziana, Kafka faz funcionar os coeficientes de territorialidade e de desterritorialização. Sua criação é uma máquina de escrita, uma máquina de expressão, capaz de desorganizar as suas formas de conteúdo, servindo-se do polilinguismo de sua própria língua e fazendo desta um uso “menor”, ou seja, um uso que opõe a característica oprimida, desta língua, à sua qualidade opressora. O que Deleuze e Guatarri chamam de literatura menor é uma literatura revolucionária.

Em seu diário, Kafka escreveu: “A palavra, não a vejo, invento-a”. Em sua prosa, ele escolheu o alemão burocrático, de Praga, em detrimento do alemão rico e nobre de Goethe; seu alemão é portanto o alemão do dia a dia, comum a todos. Segundo Deleuze e Guatarri, uma “literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”, língua modificada por uma desterritorialização. Eles analisam: “Visto que o alemão de Praga está desterritorializado por várias razões, avançar-se-á sempre em intensidade, no sentido, porém, de uma nova sobriedade, de uma nova correção inaudita, de uma retificação implacável, levantar a cabeça. Far-se-á desenvolver o alemão sobre uma linha de fuga; abusar-se-á do jejum; extirpar-se-á ao alemão de Praga todos os pontos de subdesenvolvimento que ele pretende esconder; gritar-se-á com um grito extremamente sóbrio e rigoroso. Extrair-se-á o ladrar do cão, a tosse do macaco e o zumbido do besouro. Far-se-á uma sintaxe do grito que desposará a sintaxe rígida deste alemão ressequido, e irá até uma desterritorialização que já não será compensada pela cultura ou pelo mito, que será uma desterritorialização absoluta, ainda que lenta, pegajosa, coagulada. Levar lenta e progressivamente a língua para o deserto. Servir-se da sintaxe para gritar, para dar uma sintaxe ao grito.”

Segundo Anne Sauvagnargues, professora da Universidade de Paris X, a obra literária é “uma toca, espaço de habitação, de deambulação e de reserva nutritiva, uma máquina política e experimental que transforma realmente nossas experiências e leva o leitor, assim como a literatura, a caminhos novos. Não uma metáfora, passagem do sentido próprio a um sentido figurado, mas uma metamorfose, produção de sentido, cartografia prática através dos signos que, por ser uma experiência nova, devem primeiramente ser construídos. Contra toda hermenêutica do imaginário e do simbólico, a máquina literária menor não reproduz os códigos estabelecidos, mas faz passar algo do real através da escrita para transformar nossas maneiras de ver e de sentir. A literatura não tem nada de um lazer inofensivo, mas é uma máquina de guerra, uma experimentação política”.

Nas palavras de Rafael Godinho, no texto de prefácio escrito à edição portuguesa, analisa: “O Processo, por exemplo, é um episódio da obra de Kafka. Porém, irradia para o todo do seu espaço. É um espaço de escrita. A sua constituição, ou melhor,a sua produção não é uma questão de liberdade. A liberdade afirma ainda algo de constrangedor e abstrato. Só tem mérito para quem se sinta ou se intitule realmente preso ou amordaçado, impedido de se mover. O espaço da escrita implica, antes, uma questão de saída em continuidade lógica com um espaço circunscrito. O problema que Kafka enfrentou rivalizava com esta questão. Começar uma novela e deixá-la, de repente, inacabada porque nela, involuntariamente, se conjugavam vários panoramas que a tornavam impossível de continuar. Ou então, um romance se torna interminável. Como consequência, Kafka saltava de um ponto para o outro, constituindo a escrita como um laboratório de ensaios em que a preocupação inerente à escrita aparece muito mais como experimentação do que como ensejo de acumulação autoral”.     

Para Deleuze e Guatarri, Kafka cria uma sintaxe ao grito, servindo-se da sintaxe do grito. Segundo eles: “Só o menor é que é grande e revolucionário. […] Mas, o que também é interessante, é a possibilidade de fazer da sua própria língua um uso menor, supondo que ela é única, que ela seja uma língua maior ou que o tenha sido. Estar na sua própria língua como um estrangeiro: é a situação do Grande Narrador de Kafka”. A “literatura menor” cria uma nova produção narrativa baseada em estratégias acerca da enunciação, apresentando-se através de uma linguagem que redimensiona a língua estabelecida e conservada pelos grupos dirigentes. Por si só, esta linguagem é ativa e revolucionária do ponto de vista criativo: “É isso o estilo, ou melhor, a ausência de estilo, a assintaxe, a agramaticalidade: momento em que a linguagem não se define mais pelo que diz, ainda menos pelo que a torna significante, mas a faz escorrer, pelo fluxo, fluir, explodir – o desejo. Porque a literatura é exatamente como a esquizofrenia: um processo e não uma meta, uma produção e não uma expressão”.

A editora Autêntica disponibiliza um trecho para visualização.

O livro, traduzido por Cíntia Vieira da Silva, é uma opção à edição portuguesa, até então única disponível no mercado brasileiro.

 

 

 

KAFKA – POR UMA LITERATURA MENOR 

Autor: Gilles Deleuze e Felix Guatarri
Editora: Autêntica
Preço: R$ 38,00 (160 págs.)

 

 

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