Literatura

Literatura com a curva e com a pedra

25 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

2014 marca 40 anos do falecimento do uruguaio Juan Carlos Onetti, um dos maiores autores do século XX. O livro 47 Contos abarca toda a produção de prosa curta deste escritor que, chamado em seu país de “padrinho oculto e inquietante da literatura latino-americana do século XX”, magistralmente une tragédia e humor. Traduzido por Josely Vianna Baptista, foi lançado pela Companhia das Letras em 2006.

Onetti escreveu seus contos entre 1933 e 1993 e os publicou esparsamente em periódicos. São textos marcados por uma visão de mundo tão lúcida quanto corrosiva. O escritor dizia encontrar seus temas em “sonhos diurnos”, por um “impulso onírico”. Sua literatura muito original, acompanha, com o uso poético da linguagem, a decadência contínua do homem, através de caminhos sinuosos e amargos.

Suas personagens são complexas e, regidas pelo inconformismo e pelo desencanto, transitam pelo espaço mítico da fictícia cidade de Santa María. Esse não-lugar, um pedaço de sonho de uma personagem, é cenário de diversos contos do escritor uruguaio, abriga seus desesperançados anti-heróis, representantes de uma classe média que vaga – geográfica, histórica e existencialmente –, à deriva. 

Como a reunião dos contos segue uma ordem cronológica, é possível analisar seu desenvolvimento à luz da passagem dos anos. Vê-se como tanto forma quanto conteúdos literários foram depurados, mostrando enfim ao mesmo tempo liberdade e precisão.

Como definiu Irineu Franco Perpétuo Onetti “tinha uma prosa econômica e despojada do grandiloquente barroquismo que fez a glória de tantos outros autores do continente. Pouco de pitoresco, muito de pessimismo: para Vargas Llosa, o mundo de Onetti está “carregado de negatividade, o que faz que ele não chegue a um público muito vasto”. Faulkner e o existencialismo são as influências mais marcantes de um escritor que dizia que “há só um caminho. O que sempre houve. Que o criador de verdade tenha a força de viver solitário e olhe para dentro de si”.

Mario Vargas Llosa lançou em 2009 o livro El viaje a la ficción (sem tradução para o português), um elogioso panorama da obra de Onetti. Para ele, o uruguaio foi “o primeiro escritor moderno da língua espanhola”. Em entrevista publicada no infelizmente extinto caderno “Mais!”, da Folha de São Paulo, Vargas Llosa disse, quando questionado sobre qual consolo restaria após a leitura de Onetti: “O consolo da ficção. Sua obra parece destinada a ilustrar como, por meio da ficção, somos recompensados por tudo aquilo que nos faz sofrer ou que nos desmoraliza na vida, como, ao mesmo tempo, vivemos mais, enriquecemos nossa experiência, amamos, vivemos aventuras extraordinárias. Ou seja, a função da ficção não é apenas compensatória – é também enriquecedora da experiência”. Vargas Llosa conta, na mesma entrevista: “Nunca escrevi ensaios literários sobre autores que não tivessem me impressionado muito. E é esse o caso de Onetti, é claro. Eu o descobri nos anos 1960, quando ainda era muito difícil conseguir suas obras, pois circulavam em edições pequenas. Lembro-me muito bem da leitura dos primeiros contos seus, que me impressionaram tremendamente. Penso que foi um contista extraordinário; há pelo menos meia dúzia de contos seus que são verdadeiras obras-primas”. De acordo com sua análise, Onetti “é um dos primeiros, senão o primeiro escritor na língua espanhola a fazer uma literatura completamente moderna, uma narrativa moderna. Há Borges, claro, que é um escritor absolutamente universal. Mas, para mim, não há nenhum escritor antes de Onetti que use a técnica narrativa moderna como ele faz e que, além disso, empregue uma prosa desligada da prosa tradicional. Ele inventa uma prosa a partir de uma linguagem oral, uma prosa que simula a oralidade. […] Por outro lado, me impressiona muito o mundo tão pessoal de Onetti. É um mundo de grande autenticidade, evidentemente direcionado ao pessimismo, a uma visão muito negativa da condição humana, das relações humanas”.

De acordo com o crítico Marcelo Pen, em artigo publicado também na Folha de São Paulo por ocasião do lançamento de 47 contos, as narrativas de Onetti “distinguem-se justamente por sua falta de pretensão, pelo investimento no miúdo, no sentimento que margeia a apatia, na quase paralisia angustiante que acompanha os pesadelos, no mistério deixado pelo não dito, pelo inefável. Sem alarde, sem contar nada fora do comum, elas aos poucos vão fisgando o leitor até tomar-lhe o fôlego”. Para o crítico, há, “um sentido de perda, de coisa impossível, decorrente do embate entre a realidade, sempre degradada, e algum projeto ou sonho, sempre inalcançável”. Segundo Pen, a literatura do escritor uruguaio desenvolve-se sobre a “perda das ilusões suscitada pelo escoamento dos dias, descreve o fardo da consciência inevitavelmente entrelaçada à finitude da carne. O resultado é que ela fornece um dos mais impressionantes retratos da alma humana, atormentada pela própria condição de ter vindo ao mundo” 

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Trecho do conto “A face da desgraça”:

Ao entardecer fiquei em mangas de camisa, apesar do estorvo do vento, apoiado no parapeito da varando do hotel, sozinho. A luz levava a sombra de minha cabeça até a beira do caminho de areia que, entre arbusto, une a estrada e a praia ao casario.

A garota apareceu pedalando no caminho para logo se perder atrás do chalé suíço, vazio, que mantinha o cartaz de letras negras em cima da caixa de correspondência. Era-me impossível não olhar para o cartaz ao menos uma vez por dia; apesar de sua face castigada pelas chuvas, pelas sestas e pelo vento do mar, mostrava um brilho perdurável e exibia: Mi descanso.

Um momento depois a garota surgiu novamente sobre a franja arenosa cercada de mato. Tinha o corpo vertical sobre o selim, movia as pernas com fácil lentidão, com tranqüila arrogância, as pernas cobertas com meias cinzas, grossas, lanudas, eriçadas por galhinhos de pinheiro-bravo. Os joelhos eram espantosamente redondos, bem-acabados, em relação à idade que o corpo demonstrava.

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47 CONTOS

Autor: Juan Carlos Onetti
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 36,40 (448 págs.)

 

 

 

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