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História intelectual e política

30 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O historiador Tony Judt, morto em 2010, vítima da rapidamente degenerativa Esclerose Lateral Amiotrófica, dedicou-se durante sua vida a pensar o mundo moderno e o contemporâneo, sempre através de uma prosa clara e precisa. Ao final da vida, já debilitado pela doença, ainda teve tempo de produzir um livro inédito, Pensando o século XX. Trata-se de uma série de conversas que Judt travou durante meses com seu amigo e colega, o historiador Timothy Snyder, que as gravou. Os temas discutidos são baseados em textos e tendências cuja discussão encontrou-se em voga durante todo o século XX, analisados sob suas visões intensamente críticas; por seus comentários, o século visto através de suas principais ideias e pensadores. São presenças constates nas reflexões Eric Hobsbawm, Leszek Kolakowski, a “banalidade do mal” conforme pensada por Hannah Arendt, o “liberalismo do medo”, de Judith Shklar. Judt examina triunfos e fracassos de intelectuais proeminentes, colocando suas ideias à luz de seus compromissos políticos. Também coloca importantes reflexões morais cuja repercussão estende-se ao século XXI. Judt e Snyder ultrapassam a análise do passado para pensar o presente e o futuro. 

Um livro que requer de seu leitor atenção e repertório crítico e histórico, bem como político e econômico. Trata-se de uma história da política moderna, que moldou os maiores acontecimentos do século passado. Também trata-se de uma história das ideias; por exemplo a referência a Freud e à psicologia vienense, que ofereceram “uma maneira de desmistificar o mundo, de identificar uma narrativa abrangente  com o qual interpretar o comportamento e as decisões de acordo com um padrão universal”.

A princípio, Judt planejava escrever um novo livro abrangendo uma história intelectual e cultural do pensamento social e político do século XX, porém, devido à doença, reconheceu que não teria tempo – após o diagnóstico, em questão de meses estava tetraplégico, como conta sua mulher, Jennifer A. Homans, em artigo publicado pela revista piauí, no qual ela também analisa o livro em questão: “Escrevo porque tenho algumas coisas a dizer a respeito de Pensando o Século XX – coisas que, acredito, ele gostaria que seus leitores soubessem”. A memória do historiador, única forma de autonomia ao passo que o corpo já era completamente dependente, possibilitou as lúcidas e profundas análises que tece ao longo desta publicação, último e grandioso legado intelectual, “seu portal para o mundo”, nas palavras de Homans.

Ao longo do livro, Judt analisa a fragmentação moral, as diferentes políticas econômicas e sociais, os mecanismos de controle político ideológico. Para ele, foi o século mais rotulado, interpretado e castigado que qualquer outro, repleto de sofrimentos coletivos; mas também de saldos positivos, como a criação do estado de bem estar social, que forja estados democráticos e constitucionais fortes, de alta tributação e ativamente intervencionistas, que podem abranger sociedades de massas, sem recorrer à violência e à repressão.

Segundo Elias Thomé Saliba, historiador e professor da USP, em artigo escrito ao jornal Estado de São Paulo, “provocações inteligentes não faltam e é difícil resistir à solidez e à clareza de Judt. Marc Bloch dizia que entender um acontecimento requer que o historiador se desprenda de qualquer quadro de referência específico e aceite simultaneamente a validade de vários quadros teóricos. Inspirado nessa lição, o derradeiro livro de Judt é uma anamnese brilhante da história do século 20 e, com certeza, seu mais valioso legado”.  

Como contextualiza Jorge Felix, em resenha publicado no jornal Valor Econômico, o “século XXI começou com ataques terroristas, guerras, crise financeira e insatisfação popular capaz de mobilizar multidões por todo o globo ao dispor do potencial da internet. A instabilidade econômica, a vida incerta, o risco de desfiliação profissional, o individualismo e um nacionalismo revigorado em vários países justificam identificar os tempos atuais, na opinião do historiador inglês Tony Judt”. Felix conta que Judt, provocado por seu entrevistador, “parece estar numa conversa num café falando sobre temas amenos, porém, a cada observação sua, a inquietação abate a harmonia das convicções moldadas por uma história que nos foi ensinada”. Um dos pontos analisados no livro, aponta o comentador, foi a primazia, durante o século, de “sociedades superprivatizadas”, que “colonizaram grande parte do pensamento até a crise de 2008”. Tony Judt, como o artigo cita e comenta, prevê: “‘A escolha que enfrentamos na próxima geração […] é a política de coesão social em torno de propósitos coletivos contra a erosão da sociedade pela política do medo’. Judt alerta que a ‘exploração demagógica do medo’ seduziu os eleitores americanos por oito anos, durante o governo Bush, com a ilusão de que o país pudesse se transformar em um condomínio fechado para o mundo. Esse seria o risco da democracia do século XXI e o desafio para aqueles que se propõem a pensar”.

No Brasil, Pensando o século XX foi lançado pela Objetiva em maio deste ano, com tradução de Otacílio Nunes.

A editora disponibiliza um trecho para visualização.

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“Não consigo me lembrar de um momento em que não soubesse do que ainda não era chamado de Holocausto. […]

O mundo da minha juventude foi, portanto, o mundo que nos fora legado por Hitler. Por certo, a história intelectual do século XX (e a história dos intelectuais do século XX) tem uma forma própria: a forma que os intelectuais de direita ou esquerda lhe atribuíam se a contassem em forma narrativa convencional ou como parte de um quadro mundial ideológico. Mas deveria estar claro agora que existe outra história, outra narrativa que insistentemente intervém e se intromete em qualquer relato do pensamento e dos pensadores do século XX: a catástrofe dos judeus europeus. Um número impressionante de dramatis personae de uma história intelectual de nossos tempos também está presente nessa história, em especial a partir de 1930.”

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PENSANDO O SÉCULO XX

Autor: Tony Judt
Editora: Objetiva
Preço: R$ 49,90 (427 págs.)

 

 

 

 

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