matraca

Certa palavra dorme da sombra

31 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

No dia 31 de outubro, em 1902, nascia em Itabira Carlos Drummond de Andrade. O Instituto Moreira Salles rende-lhe, nesta data, uma homenagem – veja a programação do “Dia D – que a Livraria 30porcento aqui acompanha.

Recentemente reeditado pela Companhia das Letras, o Discurso de primavera e algumas sombras foi publicado pela primeira vez em 1977. São poemas originalmente publicados na coluna que Drummond mantinha no Jornal do Brasil. É notável, neles, seu caráter público e portanto conscientemente político; muitos dos poemas tratam de episódios que pontuam um tempo conturbado, de maneira geral no mundo e, especificamente no Brasil, retratam o desalento com o regime ditatorial militar que fechava todos os espaços destinados à liberdade, coletiva e individual.

Entre os temas recorrentes nos poemas, encontra-se também, forte, preocupado, niilista, o despertar da consciência ecológica. Em tempos que realizaram a Conferência de Estocolmo, primeira grande discussão mundial sobre as mazelas planetárias do desenvolvimento industrial, Drummond foi um dos primeiros autores a posicionar-se de maneira crítica à degradação ambiental. Poemas como “Águas e mágoas do Rio São Francisco”, que abre o volume, “Num planeta enfermo” ou “Antibucólica 1972” mostram sua verdadeira indignação com a devastação da natureza. Outra vertente política da poesia drummondiana. 

Sob esse aspecto, Drummond é um poeta público, como o considerou Otto Maria Carpeaux, segundo quem o poeta representa, mesmo em seu individualismo, a sociedade de seu tempo. Para Carpeaux, no denso ensaio “Fragmentos sobre Carlos Drummond de Andrade”, ainda que só comente os quatro primeiros livros do poeta, aponta a inspiração que lhe desperta “o profundo sentimento de responsabilidade, que o arranca da solidão, que o liga a todas as criaturas que sofrem e são humilhadas, que lhe inspira a solidariedade das ‘mãos dadas’ e uma grande piedade”. Segundo Carpeaux, Drummond foi o primeiro poeta público do Brasil e do vasto mundo.

Tendo a simplicidade como critério, os seis blocos em que divide-se o Discurso de primavera e algumas sombras, choram as mudanças nas paisagens brasileiras, a ansiedade das pessoas cosmopolitas, a venda da cultura brasileira; protestam contra a guerra e reclamam dos automóveis; relembram a inconfidência mineira; também cantam os amigos, como Pedro Nava, Murilo Mendes, Portinari, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira.

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.

 

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ÁGUAS E MÁGOAS DO RIO SÃO FRANCISCO

Está secando o velho Chico.

Está mirrando, está morrendo.

 

Já não quer saber de lanchas-ônibus,

nem de chatas e os seus empurradores.

Cansou-se de gaiolas

e literatura encomiástica

e mostra o leito pobre,

as pedras, as areias desoladas

onde nenhum caboclo-d’água,

nenhum minhocão ou cachorrinha-d’água,

cativados a nacos de fumo forte,

restavam para semente

de contos fabulosos e assustados.

 

Ei, velho Chico,

deixas teus barqueiros e barranqueiros na pior?

Recusas pegar frente em Pirapora

e ir levando pro Norte as alegrias?

Negas teus surubins, teus mitos e dourados,

teus postais alucinantes de crepúsculo

à gula dos turistas?

Ou é apenas

seca de junho-julho para descanso

e volta mais barrenta na explosão

da chuva gorda?

 

Já te estranham, meu Chico. Desta vez,

encolheste demais. O cemitério

de barcos encalhados se desdobra

na lama que deixaste. O fio d’água

(ou lágrimas?) escorre

entre carcaças novas: é brinquedo

de curumins, os únicos navios

que aceitas transportar com desenfado.

Mulheres quebram pedra

no pátio ressequido

que foi teu leito e esboça teu fantasma.

[…]

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DISCURSO DE PRIMAVERA E ALGUMAS SOMBRAS

Autor: Carlos Drummond de Andrade
Editora: Companhia das Letras
Preço mínimo: R$ 29,40 (200 págs.)

 

 

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