Artes Plásticas

Arte andarilha

13 novembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

[…] o único caminho possível numa discussão teórica seja talvez limitar-se a refletir sobre como as obras e os mitos se perseguem, tangenciando-se até em seus aspectos mais prosaicos, percorrer os lugares onde os caminhos se cruzam, os fios se emaranham e se embaralham, tudo parece remeter a outra coisa, e fica evidente que a meta é o próprio caminho”.

Robert Smithson, “A Tour of theMonuments of Passaic”

Novas derivas, de Jacopo Crivelli Visconti, delimita e analisa uma forma artística recorrente desde a década de 1960: a incorporação do ato de andar, normalmente protagonizado pelos próprios artistas. De acordo a definição de Guy Debord, este é o processo artístico conhecido como deriva. A análise de Visconti tece uma ampla reflexão sobre os trabalhos de deriva, marcados por um posicionamento situacionista para despertar reflexões sociais, politicamente engajadas. Imateriais e, portanto, invendáveis, são trabalhos que relacionam-se com o espaço, cartografando-o de maneira singular e desenvolvendo uma interessante crítica à subserviência das artes à banalidade mercadológica.

O livro, que surgiu como uma tese, defendida pelo autor na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) – USP, apoia-se em vasta e profunda pesquisa sobre as ideias e processos desenvolvidos nas artes plásticas nas últimas cinco décadas. Visconti divide a tese em duas partes. Na primeira delas, estabelece relações entre a criação de obras com seus respectivos contextos históricos – dentre o que considera suas localizações entre vertentes artísticas e intelectuais –, para destacar algumas características recorrentes nas derivas. Estabelece, assim, panoramas gerais, diálogos entre as derivas e tendências gerais que concernem à crítica e teoria da arte, como por exemplo a desmaterialização artística, ou a chamada estética relacional. Novas derivas demonstra, assim, a estreita relação entre “revolução e marcha, algo que o próprio termo ‘movimento’, no cruzamento altamente simbólico de suas diversas acepções, explicita de maneira evidente”.

Na segunda parte, o autor ainda apresenta um amplo compêndio de trabalhos artísticos pertinentes à discussão, produzidos desde a década de 1960.

Abilio Guerra, arquiteto e professor, em texto baseado na argüição feita durante a banca de defesa de tese de doutorado por Jacopo Crivelli Visconti, em abril de 2012, conforme publicado no site Vitruvius, elucida: “O que o autor nos oferece nas primeiras páginas são dois elementos estruturadores: a pauta por onde se montará sua narrativa – a deriva, proposta por Guy Debord dentro do escopo intelectual da Internacional Situacionista e suas variações ocorridas ao longo das décadas; e o estofo ético que acomodará seu desenvolvimento: “a aspiração a uma arte não comercializável”. Ambos os elementos – um modus operandi (o ato de andar) e um valor (o não vendável) – nos colocam diretamente em contato com o famoso flanêur que Walter Benjamin vai buscar em Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe, E.T.A. Hoffmann e outros escritores românticos. Na interpretação benjaminiana, trata-se de um personagem que usa o ato de andar como resistência às transformações urbanas e sociais impostas pelo avanço do Capital”. … conta que durante a leitura de Visconti, percebeu que “a narrativa se enredava no objeto que buscava dar sentido, que o próprio texto era uma deriva, ou – para mencionar o próprio autor – uma “viagem crítica” ou “viagem do crítico” (p. 23). Aceitei que a tese deveria estar em algum lugar, mas que provavelmente só a acharia por acaso”. De acordo com Guerra, a “constante efemeridade e solidão constitutivas do andar estético são dependentes do “ato de contar histórias” (p. 32), pois somente através do registro é que sua memória será preservada. Esta constatação provisória permite ao autor uma aproximação com o conceito de “narrativização das práticas”, proposta por Michel de Certeau no âmbito da história do homem comum, onde o rotineiro desprovido de valor elevado só se revela a partir das narrativas cotidianas que lhe dão substância. Este duplo desvio – tão sutil que um leitor apressado não se dará conta – aproxima as práticas estéticas do andar às narrativas literária e cotidiana, e o artista andarilho sem destino e sem objetivos grandiosos ao literato e ao homem comum”. Guerra também pontua que o que “estaria na raiz revolucionária do projeto estético de Debord e colegas da Internacional Situacionista é que as derivas são concebidas com a “função de libertar o sujeito de sua condição de mero expectador, isto é, de súcubo da sociedade do espetáculo, que abre a mão de viver a vida, conformando-se com observá-la” (p. 52). A alforria frente à submissão se encontra não no âmbito reintegrador da narrativa, mas no controle da experimentação tátil e intelectual do próprio corpo”. Segundo o professor, “Jacopo pratica a deambulação argumentativa, errando por prática alheias e argumentos diversos, inclusive os próprios. […] sua hipótese central: o quanto a arte contemporânea, apesar da internacionalização institucional e discursivo por qual ela passa, expressa demandas culturais e políticas locais. O Ethos de um povo ou as vicissitudes políticas pelas quais ele passa são detectáveis nas obras de arte diversas que tem como ponto em comum esta contaminação coletiva na obra individual. Na avaliação de Jacopo, não se assemelham como procedimentos às artes vinculadas à tradição das derivas, mas com elas mantém pontos de contato que permitem uma iluminação por contigüidade”.

O próprio autor contextualiza sua análise em relação a Guy Debord; em artigo apresentado no Simpósio “Representação dos lugares na cultura brasileira”, Visconti citou o filósofo e analisou: “Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem e de passeio”. Começa assim o celebre texto-manifesto de 1958 em que Guy Debord descreve a prática da deriva, que consiste em perambular, principalmente a pé, mas eventualmente também de outras formas, sem rumo pré-definido, escolhendo ao acaso, ou com base em sensações e impressões extemporâneas, a direção a ser tomada a cada momento. A apreensão da realidade profunda, misteriosa e escondida da cidade, possibilitada pelas derivas é, como bem diz o próprio Debord, uma proposição ao mesmo tempo lúdica e construtiva, cujo tom jocoso não desmente o caráter profundamente sério e engajado. O objetivo explícito das derivas, de fato, é “estabelecer […] uma cartografia influencial que falta até o momento, e cuja incerteza atual, inevitável até que se efetue um imenso trabalho, não é pior que a dos primeiros portulanos, e com uma diferença: não se trata de delimitar exatamente continentes duráveis, mas de mudar a arquitetura e o urbanismo”. Formada prevalentemente por escritores, artistas e arquitetos ao longo da sua atribulada existência, e apesar de uma progressiva radicalização de suas posições políticas, a Internacional Situacionista, da qual Debord foi fundador e líder intelectual, deve ser considerada um movimento eminentemente artístico, principalmente em seus primeiros anos, e é de fato uma leitura a partir do âmbito artístico de textos como a Teoria da deriva que melhor demonstra quanto, para além talvez das intenções do próprio Debord, suas idéias acabariam reverberando na produção artística até hoje”. Segundo Visconti, “a partir dos próprios situacionistas, as derivas são atividades que não visam à produção de um registro ou um resultado imediato, negando-se, assim, a aceitar a lógica burguesa que só concebe atos com uma finalidade prática e clara”.

 

 

NOVAS DERIVAS

Autor: Jacopo Crivelli Visconti
Editora: WMF Martins Fontes
Preço: R$ 27,93 (200 págs.)

 

 

 

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