Literatura

Ainda, o mais complexo romancista da Amazônia

13 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Eu digo tão simplesmente: é a farinha d’água dos meus beijus (sic). Sou um também daqueles de lá, sempre fiz questão de não arredar pé de minha origem e para isso, ou melhor, para arredar o pé mais fundo, pude encontrar uma filiação ideológica que me dá razão. A esse pessoal miúdo que tento representar nos meus romances chamo de aristocracia de pé no chão” – Dalcídio Jurandir.

Fotografia de Pedro Martinelli

Chove no campos de Cachoeira foi publicado a primeira vez em 1940. O romance de Dalcídio Jurandir (1909-1979) é marcado pela expressiva força narrativa. Influenciado pela segunda geração do romance modernista brasileiro, reconstitui o universo amazônico, através da descrição de vivências regionais, apropriando-se da oralidade cotidiana para explorar aspectos singulares da articulação entre os contextos humano e geográfico. As elaborações linguísticas típicas e suas imagens, bem como os aspectos culturais e mesmo as concepções sociopolíticas que resguardam, atravessam toda a prosa de Dalcídio Jurandir.

É pena que seja atualmente um autor esquecido. O conjunto de sua obra, contendo títulos como Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), ganhou, em 1972, o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.

Segundo Benedito Nunes, no ensaio “Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco”, o chamado “Ciclo do extremo norte” de Dalcídio, é “enxerto da introspecção proustiana na árvore frondosa do realismo” e “afasta-se, graças à força de auto-análise do personagem e à poetização da paisagem, das práticas narrativas do romance dos anos 30, com uma certa constrição do meio ambiente e da tendência objetivista documental, afinadas com a herança naturalista”

Sem cair numa folclorização exótica, a narrativa de Chove nos campos de Cachoeira é ambientada em Cachoeira do Arari, lugarejo habitado por Alfredo, rapaz que no romance identifica-se arquetipicamente com os habitantes da Amazônia paraense rural e que vai para a capital a fim de prosseguir seus estudos. Mostrando os contrastes do interior com a metrópole, os costumes da europeizada Belém aos da provinciana Marajó, o romance retrata com riqueza de imagens a existência humilde e agreste de pequenos proprietários de terra, campeadores, pescadores, barqueiros, empregados das fazendas. Seu tema é a matéria humana.

É considerado o primeiro romance amazonense moderno. Foi também o primeiro de um ciclo de dez obras de Dalcídio Jurandir – que compõem o referido “Ciclo do extremo norte”. Benedito Nunes, referindo-se aos sentidos desta classificação, diz: “O primeiro sentido corresponde à execução de amplo e continuado projeto, seja o conhecimento do indivíduo em meios e ambientes sociais diversos, como o que Balzac perseguiu em seus vários romances, sob o título geral de “Comédia Humana”, seja a comprovação de uma ideia ou tese, como a da hereditariedade fatal das taras em famílias debilitadas pela pobreza e pelo álcool, ordenadora do grande painel naturalista de Émile Zola, os “Rougon-Macquart”. Entre nós, Octávio de Faria escreveria uma “Tragédia burguesa” em mais de dez volumes”. Segundo o crítico, o ciclo de Dalcídio Jurandir, porém, “não tem projeto cognoscitivo antecipado nem obedece ao intuito de comprovar conceitos abstratos”. Conceitos integrados em um ciclo romanesco, pelas personagens, pelas situações que as entrelaçam e pela linguagem que as constitui, cujo intuito era formar o panorama de uma constelação de falas nortistas memoráveis.

Sobre as incontornáveis dificuldades financeiras, Dalcídio conta que, ao contrário dos literatos vindos de fora e que logo envolviam-se com a política, “sangrando o Tesouro”, os escritores da terra “ficam no peixe frito. Ah! é notável a influência do peixe frito na literatura paraense! Peixe frito é o peixe vendido em postas nos taboleiros do Ver-o-Peso ao lado do mercado em Belém. É a comida para quem não deixa almoço comprado em casa. Ao chegar o meio dia, o pobre se tem a felicidade de haver arranjado dois mil réis leva um embrulhinho envergonhado de peixe para casa. A vida literária do Pará tem se movimentado em tomo do peixe frito. Conheço profundamente esse drama. Sempre fui empregadinho público como me chamou certo imortal (da Academia de Letras do Pará), morando numa barraca na São João, com família e perseguido pelos camisas verdes. […] E outras misérias. E a vida do chamado intelectual na província é mais trágica do que se pensa. Bancamos bobos de rei, mas de graça. A não ser a honra dum convite para uma qualquer chateação literária e mais nada. O resto é o peixe frito”.

No mesmo texto, narra as peripécias para o envio de Chove nos campos de Cachoeira para concorrer ao prêmio Dom Casmurro, que afinal venceu: “Do “Chove” tinha uma papelada velha que se pode convencionar como material todo desarrumado e roído de traças, vindo das alturas de 1929. Me lembro que fiz essa tentativa com uma literatura desenfreada e uma pretensão a fazer estilo, que era um espetáculo. […] Passou o tempo e larguei o troço sob o peso do castigo de tanta presunção literária. Em Salvaterra pensei então retirar do entulho os personagens mal esboçados, o fio de algumas impressões vagamente fixadas e fiz o romance. Nada ficou da tentativa de 1929. Pensava acabar o romance um pouco antes do encerramento do concurso. Mas não acabei. Voltei de Salvaterra sabendo do adiamento. Mendes e Stélio leram o livro e acharam que eu devia mandar uma cópia mais limpa. Como, se faltavam vinte dias para terminar o prazo? Então Guiomarina, minha mulher, doente como se achava, se dispôs a datilografar o romance. Eu, desanimado, não dava conta e depois ocupado na luta do peixe frito e mesmo porque aceitara um lugar no Recenseamento oferecido pelo amigo Adelino Vasconcelos, delegado regional do Pará. Guiomarina, doente, em quinze dias passou a limpo o romance. Foi uma obstinação. Ela queria que eu mandasse a pulso o romance para o concurso. Por isso que todo o sucesso devo a ela.

“Mas faltava o dinheiro para mandar o livro pelo avião. Só havia três dias de prazo. E com Mário Couto fomos cavar entre os amigos o dinheiro. Paulo Mendes e Stélio me deram dez mil. Jorge Malcher, cinco. E eu tinha vinte. Fui à Panair expedir o livro como encomenda por ser mais barato. Mas me disseram que não se fazia mais encomenda. Olhamo-nos eu e Mário, desalentados. Meu desejo era corresponder ao esforço da Guiomarina. Não queria voltar para casa com o livro debaixo do braço e vê-la triste, sabendo que todo o trabalho havia sido inútil. Ao menos o consolo de enviá-lo ao concurso, queríamos. Saímos da Panair e voltamos. Cavamos mais dez e fomos ao correio. Entrei na bicha e esperei a minha vez. Tinha o dinheiro na mão e aflito porque não sabia de certeza quanto era a taxa. Se fosse mais? Esperei meia hora na bicha para chegar ao guichet e ouvi do funcionário que a taxa era tanto e o dinheiro não dava. E me olhou com uma tal superioridade funcional que sai. humilhado. E eu era a desolação em figura. Faltavam vinte mil réis e onde encontrar esses vinte mil réis? Pensei no personagem do “Chove” e sai com Mário, atrás dos vinte mil réis. Vimos na Confeitaria Central o pintor Barandier da Cunha e Osvaldo Viana, meu amigo e uma das figuras expressivas nos meios de Belém. Eles nos deram os vinte. Corremos, faltava meia hora para fechar a mala. Entrei na bicha, suando e pensando em Guiomarina, em casa, esperando o resultado do trabalho. E mandamos o volume no porte simples, sem recibo, sem nada, para um rumo incerto, podendo nunca mais chegar ao DOM CASMURRO!

“Tudo isso humilha e esgota a gente. Conto tudo isso rara mostrar como é que se escreve no Brasil”.

Chove nos campos de cachoeira foi re-editado pela 7 Letras, em 2011, mas já encontra-se novamente quase esgotado, presente apenas de maneira esparsa no catálogo de pouquíssimas livrarias.

É possível visualizar o primeiro capítulo do livro aqui.

 

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Trecho:

Sim, como veio tão bela! Perdera aquela brutalidade, aquele riso, aquele desleixo. Veio calma na sua marcha para a maternidade. Eutanázio abriu mais os olhos. Ninguém ficou na saleta.

Desejou passar a mão naquele ventre que crescia vagaroso como a enchente, com a chuva que estava caindo sobre os campos. Desejaria beijá-lo. Está vendo ali a criação, a Gênesis, a Vida. Via nela qualquer coisa de satisfeito, de profundamente calmo e de inocente. Não dava mostra nenhuma de sofrimento, nem de queixa nem de ostentação. Era como terra no inverno. Seu ventre recebeu o amor uma terra. Como a terra dos campos de Cachoeira recebia as grandes chuvas. Por isso ela já humilhava-o de maneira diferente. Tinha sido falada em Cachoeira, enganada, traída,e não mostrava senão a aceitação do filho como um triunfo. Tinha um filho, tinha um filho, seu ventre estava alto e belo. E ele no fundo da rede ia morrer sem aceitar a morte, sem ter aceitado a vida. Quando podia se reconciliar com ela, a serenidade daquele ventre humilhava-o, cobria-o de ridículo. Irene estava mansa, sorria para ele com um sorriso de ser fecundado, de criatura que renova em si mesma a vida. Irene restituíra-se a si mesma. O sorriso dela era manso e nascia de seu coração como luz de amanhecer. Quanto ele não souber sofrer! Morria miserável, ridículo,com aquele medo na entranha, nos ossos. Diante de Irene queria se encher duma coragem imensa para aceitar o  seu destino. Irene era o Princípio do Mundo. As grandes chuvas lhe traziam o filho. Seus peitos cresciam, se enchiam de leite como os das vacas. Ela era tão magnificamente animal, que em seu rosto calmo, em seu ventre, em suas mãos só havia inocência, a inocência de todo o mistério criador. Só ela era a vida! Só ela era a vida!

[Fonte: dalcídiojurandir.com.br]

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CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA

Autor: Dalcídio Jurandir
Editora: 7 Letras
Preço: R$ 43,00 (264 págs.)

 

 

 

 

 

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